O pernambucano Kleber Mendonça Filho construiu carreiras respeitabilíssimas como crítico de cinema (seus textos são tão primorosos que mereciam uma antologia impressa) e curta-metragista (Vinil Verde, Eletrodoméstica e Recife Frio estão entre os melhores filmes já produzidos no formato, no Brasil ou fora — veja alguns deles AQUI).
O Som ao Redor é o seu primeiro longa de ficção. O filme é sobre o Brasil ou, melhor dizendo, sobre nós, brasileiros, e a viela em que nos amontoamos e canibalizamos o próximo.
Filme-coral, passado quase que inteiramente numa rua do Recife, ele mostra (em vez de dizer) duas ou três coisas tão sutis quanto percucientes sobre o apartheid sócio-econômico brasileiro. Não há discursos, não há situações-laboratório, não há conversa fiada, não há ideologismos, não há neo-realismo, não há cinemanovices. Há uma população muito bem escolhida de personagens, ricos e pobres, no topo, na base e no centro da cadeia alimentar brasileira, que se movimenta em círculos por essa viela na qual o filme se situa e, a bem dizer, situa cada espectador que se disponha a vê-lo. Olhamos para o filme, mas é, sobretudo, o filme que olha para nós.
KMF, ao contrário de quase todos os cineastas brasileiros, “sérios” ou não, tem enormes cultura cinematográfica e inteligência audiovisual (filme tem uma estupenda banda sonora; cena em que dois personagens visitam um cinema abandonado, por exemplo, é genial). Seu filme não joga conversa fora, não tenta convencer o espectador de nada, não minimaliza ou tampouco relativiza o que aparece na tela. Ele se limita a passear pelo enorme fosso social em que vivemos. Se o inferno é sempre o outro (e é mesmo), O Som ao Redor mescla Ozu e Haneke para lançar um olhar às vezes compassivo, mas sempre irônico (e autoirônico) para os personagens e suas vidas. A câmera desliza de um lado a outro do muro social, aproxima-nos de todos, sem exceção, testa os nossos preconceitos para melhor ridicularizá-los. A única coisa democratizável, aqui, é a miséria, seja ela qual for — econômica, afetiva ou moral.
Há a dona de casa que fuma maconha e monta na máquina de lavar enquanto ela centrifuga para obter algum prazer (coisa que KMF já explorara lindamente no curta Eletrodoméstica); o moleque de família rica que rouba aparelhos de som dos carros por (pressuponho) tédio puro; a mulher que, pateticamente, tenta negociar um desconto no aluguel porque uma garota se matou no prédio; o amor entre um rapaz e uma moça, amor que nasce, cresce e morre porque todos parecem viver numa estufa; a vizinha que agride aquela dona de casa porque a TV comprada por esta tem oito polegadas a mais; o homem que reencontra uma antiga paixão, mas trivializa isso ao falar a respeito com o sobrinho, os dois à mesa tomando café (como falar de si? Do outro? Do que quer que seja?); as relações de todos com as domésticas, com os vigias da rua e os funcionários dos prédios, viscosas dessa mistura de hipocrisia e culpa de classe média (demitir ou não o porteiro que dorme em serviço?: a reunião de condomínio em que discutem isso é um pequeno filme de terror); o sonho de uma menina, em que seu quintal é invadido pelos outros; a raiva mal ou nem disfarçada dos mais pobres, e a vingança de dois deles contra o ex-senhor de engenho que reina no bairro.
Tudo isso são como estilhaços de um país que, pela sua própria natureza disforme, injusta e perversa, nasceu e se desenvolveu assim, estilhaçado. E, nesse sentido, na medida em que o filme inteiro se baseia na série interminável de pequenas contradições que formam a contradição maior e irresolvível — o próprio Brasil –, talvez a melhor forma de resumi-lo seja por meio de uma expressão paradoxal: O Som ao Redor é um épico mundano, o melhor que poderíamos produzir.