O texto abaixo foi escrito pela professora Leila Lehnen e usado como peça de divulgação pela Rocco durante a FLIP 2012.
“Difícil ser humano”. Esta epígrafe, da poeta goiana Dheyne de Souza, abre Paz na terra entre os monstros (2008), segundo livro do escritor goiano radicado em São Paulo, André de Leones. A dificuldade de ser humano, de continuar humano em um mundo alienante é um dos temas recorrentes na obra de Leones. Desde sua estreia literária com o romance Hoje está um dia morto (2006), galardoado com o prêmio Sesc de Literatura 2005, Leones trabalha com questões que abordam a frágil fronteira que separa a vida da morte, o querer viver do desejar morrer e finalmente, o existir do viver. Seus personagens, jovens perdidos e melancólicos, garçonetes desiludidas e juradas de morte, casais acidentais que sobreviveram – pelos menos fisicamente – uma catástrofe confrontam o leitor com perguntas difíceis sobre por que continuamos nas nossas rotinas, no nosso dia-a-dia e como podemos confrontar a dor de perdas, de decepções, enfim, da vida. São as perguntas que se fazem muitos dos personagens de Leones. As suas respostas são ambíguas, como se não houvesse (e, em muitos dos casos, realmente não há) uma resposta certa para os dilemas a partir dos quais são tecidas as narrativas de Leones.
Com uma prosa econômica, de parágrafos curtos e diálogos concisos, que ao mesmo tempo ecoam o linguajar coloquial e o transforma em poesia, André de Leones forja histórias cotidianamente melancólicas. Os seus três romances, Hoje está um dia morto, Como desaparecer completamente (2010) e Dentes negros (2011) usam cenas do dia-a-dia para transformá-las em flashes de uma excepcionalidade perturbadora. Assim, por exemplo, o encontro entre Renata e Hugo, dois dos personagens de Dentes negros, aparenta uma normalidade que, no entanto, mal consegue esconder a tragédia que se tornou o andaime de suas vidas. Em uma típica cena de bar, no meio de uma happy hour barulhenta, vemos Hugo e Renata fazendo uma tentativa cuidadosa de aproximação “Eles estão sentados à mesa do bar, outra vez em silêncio. Ela é muito jovem e ele não sabe o que ela faz, não se lembra quem os apresentou, não sabe com quem ela chegou àquela mesa, ele chegou depois e ela já estava lá. Dois órfãos, ela baiana, ele goiano, suas terras natais devastadas, suas famílias, e ele pensa sobre o que ela disse antes, aquilo sobre eles estarem envenenados, algo assim” (página 21). A cena captura a solidão que penetra o texto como uma fina garoa de inverno paulista. Dentes negros é um romance da orfandade, do abandono literal e metafórico. O romance explora a questão de que significa sobreviver à morte coletiva. A culpa decorrente, como sugere a escritora Adriana Lisboa na orelha do livro, está composta de silêncios. Dentes negros traduz estes silêncios para a literatura.
A mesma desolação que permeia o último romance de André de Leones se anuncia desde sua primeira obra, Hoje está um dia morto. Se Dentes negros está escrito em uma linguagem direta que espelha a paisagem devastada onde a narrativa se desenvolve (e que é belamente ilustrada pelas fotos em preto-e-branco de Lívia Ramírez que abrem os capítulos do livro), Hoje está um dia morto intercala o linguajar direto, quase brutal de dois adolescentes no momento em que se descobrem (e, ao mesmo tempo se perdem), com uma prosa poética que revela uma sensibilidade aguda para a beleza do convencional. Uma prosaica saída de escola se transforma em um pequeno vórtice cheio de ansiedade juvenil: “Início de tarde technicolor iluminando a debandada escolar. Todos na rua com seus berros objetos até mais te vejo mais tarde. Bicicletas quase voam ruabaixo ruacima. Mães motorizadas quase atropelam filhos de outras mães. Restos da lama da chuva de horas antes premiam costas e calças de pedalantes destemidos” (página 71). A passagem impõe uma visão sinestésica que nos transporta para o momento em que a escola abre as portas deixando escapar a corrente de vida contida por horas à beira de escrivaninhas. Hoje está um dia morto é, efetivamente, um (anti)Bildungsroman que expõe a explosão de energia adolescente no momento em que esta se transforma em matéria morta.
Amor, sexo e a mortalidade são também os eixos que organizam o segundo romance do autor, Como desaparecer completamente. A trama, que segue diferentes personagens cujos caminhos se cruzam, se chocam e se separam numa São Paulo condensada na área Paraíso-Jardins-Higienópolis-Baixo Augusta, usa a metáfora do sexo (mas não necessariamente do orgasmo) como uma pequena morte (tema que também surge em Hoje está um dia morto e em algumas das histórias de Paz na terra entre os monstros). Como desaparecer completamente privilegia o thanatos sobre o eros. Há, como em Dentes negros, um elemento de decadência que se insinua nas cenas que descrevem os múltiplos encontros sexuais entre os personagens. Os corpos que surgem das páginas de Como desaparecer completamente evocam as imagens do pintor austríaco Egon Schiele (cujo A morte e a donzela ilustra a capa de Paz na terra entre os monstros). Como nos quadros de Schiele, há uma beleza decrépita nos movimentos sôfregos dos personagens do romance e na sua tentativa de comunicar-se através da linguagem corporal. A comunicação, o contato humano é penoso mas necessário, pois é uma possível resposta à pergunta do “por quê” e “como” mencionadas acima. Não é de se surpreender então que todas as obras de Leones contenham trechos extensos de diálogos.
André de Leones é capaz de inserir um máximo de significando em um punhado de palavras, extraindo sentido de cada vocábulo. Deste modo, em sua coleção de contos Paz na terra entre os monstros, ele condensa uma história de vida em apenas um parágrafo no conto “Desde pequenos nós comemos silêncios”. As histórias deste livro, assim como os romances de Leones, contêm uma violência contida que se deflagra sem alaridos. É a tragédia sem lágrimas ou gritos, toda ela uma carga de dor existencial muda, abarcada em uma janela aberta ou no grito silencioso e de dentes negros dos mortos que aparecem no romance homônimo. Esta imagem, aliás, lembra outro quadro: O grito, do norueguês Edvard Munch. A imagem de Munch evoca a mesma angústia relatada em Dentes negros, assim como o questionamento que está por detrás deste sentimento: “por que existimos?” e “como lidamos com a dor da existência?”. Se a pergunta pode ser piegas e repetitiva, a resposta literária de André de Leones não o é. Por um lado, o autor impõe uma visão decididamente contemporânea a esta interrogação existencial. Suas histórias ocorrem em uma atualidade familiar, cheia de referenciais culturais que localizam os seus personagens dentro de um contexto específico (vide o título do segundo romance do autor, uma alusão à canção How to disappear completely, do grupo britânico Radiohead). Por outro lado, a sobriedade e lucidez de sua prosa não permitem sentimentalismos, mas nos conduzem a uma reflexão penetrante, porém artística, da condição humana.
Leila Lehnen
Universidade do Novo México
Albuquerque, NM (EUA)