MC Sapinho de Israel.

O texto abaixo foi originalmente publicado no jornal O Globo, suplemento “Prosa & Verso”, em 23 de janeiro de 2010. Eu o estou republicando aqui porque o personagem da matéria, o funkeiro carioca-israelense MC Sapinho de Israel, aparecerá no “Fantástico” daqui a alguns dias. Segundo me disseram, alguém leu o que escrevi, achou bacana e sugeriu a pauta. O Sapo, agora, será global. Ele merece. Outra coisa: a versão do texto que publico abaixo não é a que saiu n’O Globo. É uma versão estendida: o jornal publicou apenas a segunda parte.

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MC SAPINHO DE ISRAEL
Sobre como me deparei com um funkeiro carioca do lado de lá do Mediterrâneo.

1.
Quando cheguei a Israel em maio de 2009 para uma temporada mínima de seis meses e máxima de três décadas e meia, a última coisa que eu esperava encontrar era um cantor de funk carioca fazendo carreira debaixo do nariz de “Bibi” Netanyahu, que por acaso é meu vizinho aqui no bairro hierosolimita de Rehavia e, a não ser que eu esteja imaginando coisas, dá tchauzinho sempre que passa debaixo da minha sacada em suas idas e vindas do Knesset. “Bibi”, a despeito do apelido (tenho certeza de que um MC Bibi só cantaria proibidões), não me parece ser o tipo de sujeito que curte funk, mas a quantidade de seus conterrâneos que apreciam um bom pancadão tem aumentado sensivelmente de uns tempos para cá graças ao MC Sapinho de Israel, sobre quem falarei daqui a pouco.

A princípio, tudo o que eu queria no momento em que fiz as malas e disse tchau para os meus familiares, amigos, biblioteca, cachorros e botecos de estimação, nessa ordem, era, também pela ordem, conhecer um país radicalmente diverso do meu, tirar fotos, fugir dos credores, cometer as gafes culturais de praxe, aprender alguns palavrões em hebraico e começar a escrever o meu próximo romance. Entretanto, quando Marcelo Korn, o meu shutaf, isto é, o cara com quem eu divido um apartamento aqui na Rua Harav Hertzog, em Jerusalém, pertinho da casa do “Bibi”, contou que um de seus irmãos cantava funk por aqui sob a alcunha de MC Sapinho de Israel, a mesma curiosidade congênita que um dia me levou a cabular uma prova do vestibular de cinema da Universidade Federal Fluminense para continuar bebendo cerveja e ouvindo as histórias fantasiosas (ela mentia deslavadamente) de uma acreana neta de turcos em um boteco no Ingá, em Niterói, aflorou. Ou seja, eu tinha que conhecer o tal irmão do meu shutaf.

De imediato, e seguindo uma sugestão de Marcelo, joguei as palavras “MC Sapinho de Israel” no campo de busca do YouTube e me esbaldei com os vídeos que foram aparecendo, trechos de apresentações do Sapo em bares de Tel Aviv e em um festival de música latina em Haifa. Dias depois, tendo já enfiado na cabeça que escreveria algo a respeito, recebi o funkeiro em casa e conversamos por um bom tempo enquanto, na televisão ligada, Lawrence da Arábia, acompanhado pelas indefectíveis legendas em hebraico, tostava sob o sol do deserto e mostrava o que é que os oficiais britânicos daquela época, início do século XX, tinham (coragem, sotaques bacanas, olhos azuis) e não tinham (protetor solar, senso de esportividade quando em guerra, habilidade no manejo de motocicletas).

“Uma pena que eles não exibam o filme em widescreen”, comentei. “O deserto não cabe aí nessa tela cheia, não.”

Sapinho concordou, balançando a cabeça, ou talvez nem estivesse prestando atenção no que eu falava e tenha feito isso, balançado a cabeça, apenas por educação. De um jeito ou de outro, apertei a tecla mute e demos início a uma entrevista nem um pouco formal. Em poucos minutos, entretanto, o quadro estava pronto. Minha Jerusalém interior, por assim dizer, fora acrescida de uma figura novinha em folha e em tudo diferente das demais. Nada mais fácil, aliás, do que conhecer pessoas interessantes em Jerusalém, sobretudo quando vago sem rumo, isto é, sem estar procurando por qualquer coisa em especial.

O fato de, imediatamente após a minha chegada, ter ficado vinte dias em um albergue certamente contribuiu, e muito, para essa impressão. Por outro lado, se no tal albergue havia um corinthiano nascido na Argentina e cujos pais moram em São Paulo, um artista plástico & corretor de imóveis nascido no Uruguai, uma economista australiana que conseguiu se perder nas ruínas de Massada e foi resgatada por um simpático casal de velhinhos austríacos que usavam camisetas nas quais se lia “Masada shall never fall again!” e, finalmente, um canadense de ascendência indonésia que pagou o equivalente a R$ 60,00 por um mísero rosário de madeira que não valia mais do que R$ 5,00, nem em meus sonhos vitaminados por litros e litros de cerveja israelense Goldstar, consumidos no aprazível pub Stardust, meu boteco hierosolimita do coração, eu esperava encontrar um carioca que faturasse algum cantando funk por Israel afora.

Em relação a esse tipo de descoberta inesperada, tão comum por aqui, eu logo percebi, por exemplo, que existem várias Jerusaléns e não apenas uma. E eu nem estou me referindo à Cidade Velha com todo aquele esquema do tipo cada-um-no-seu-quadrado: quarteirão judeu (de longe o mais limpinho e silencioso), quarteirão árabe ou muçulmano (de longe o mais tresloucado e colorido), quarteirão cristão (de longe o mais morbidamente animado, com turistas débeis mentais carregando cruzes pela Via Dolorosa enquanto suas esposas gordotas fotografam tudo) e quarteirão armênio (de longe o mais… armênio). Jerusalém é uma sucessão de pequenas bolhas que nem sempre (ou quase nunca) se comunicam. Aqui, há desde o bairro de judeus ultraortodoxos, Mea Shearim, até a banda oriental da cidade, predominantemente árabe. E, pelo que estou vendo, logo haverá um quarteirão funkeiro, talvez sobre uma laje no bairro de Talpyot, por mais que MC Sapinho não resida aqui, mas em Ramat Gam, nos arredores de Tel Aviv. Que sejam duas lajes, então: uma aqui, outra em Ramat Gam.

2.
A luz não é das melhores, mas é possível divisar o que está à frente e ao redor sem muitos problemas. No palco, estão o cantor, duas dançarinas e o DJ com a parafernália de praxe. A galera dançando ao ritmo da batida inconfundível do funk carioca pode dar a impressão de que estamos na Cidade de Deus, no Andaraí ou em algum outro lugar do Rio de Janeiro, mas não é o caso.

Estamos no Rich Bar, em Tel Aviv, em uma noite calorenta do final de junho, bem no começo do verão israelense. Na platéia, brasileiros residentes em Israel ou de passagem pelo país fazendo coro em praticamente todas as músicas, coisa que não intimida os israelenses e os demais presentes no local. Muito pelo contrário: com a música, ou graças a ela, a pequena Babel improvisada acaba por se tornar uma mesma e única festa, indivisível, como se todos os presentes ali tivessem o hábito de sair juntos para a balada há tempos, desde quando eram moleques no Botafogo ou na Tijuca. Alguém poderia argumentar que se trata de uma característica da noite de Tel Aviv, cidade que, juntamente com a capital do Líbano, Beirute, é a mais cosmopolita e liberal do Oriente Médio, um ambiente assim, digamos, secular se comparado ao de Jerusalém. Mas isso não importa. À medida que cantor, DJ e dançarinas incendeiam a platéia com uma sucessão de hits reconhecíveis até mesmo por aqueles que não curtem a batida, a impressão de estarmos em um autêntico baile funk no coração da noite carioca é algo assim decididamente inescapável.

Majestoso e gorducho (mas não exatamente como o Buck Mulligan do “Ulisses” de James Joyce), quem está no centro do palco fazendo nada menos do que o seu terceiro show naquela noite é ele: MC Sapinho de Israel. Careca coberta por um boné, camiseta larga e calça jeans, ele enfileira frases e versos em português e hebraico e deixa transparecer todo o conforto do mundo. Está, como se costuma dizer, em seu elemento, e o público percebe isso de imediato e canta com ele versos do tipo: “Na minha casa / O mal não vai entrar / Tem a Bíblia e o Alcorão / E na porta o Mezuzá”. Todos ali parecem concordar alegremente que “O bonde mais sinistro / É Jerusa e Nazaré”. Assim, MC Sapinho segue, como ele próprio não se cansa de dizer, “introduzindo a cultura do funk” na pátria de Amós Oz e Shimon Peres. É bastante provável que estes dois ainda não saibam ou sequer venham a saber do que é que se trata, mas, a julgar pelo número de shows que não param de aumentar semana após semana, não é nenhuma sandice imaginar que, em um futuro muito próximo, os israelenses em geral estarão bastante familiarizados com o ritmo engendrado na periferia do Rio de Janeiro em meados da década de 1980.

MC Sapinho de Israel é Sandro Korn, um carioca corpulento de vinte e nove anos, bem humorado e de aparência tranquila, sempre disposto a conversar sobre como veio a se tornar o primeiro funkeiro de Israel.

Quando ele, em pleno shabat, irrompeu no meu apartamento e se sentou no sofá, pronto para conversar comigo sobre, basicamente, como tudo isso é possível, eu senti aquele velho arrepio de quando sou colocado frente a frente com a santa ilogicidade das coisas. Existe uma palavra em hebraico, uma gíria, que dá conta de toda a gratuidade da vida: stam. O termo se refere a tudo aquilo que acontece porque sim, que é inesperado e sem explicação plausível ou mesmo implausível. Há coisas mais importantes e instigantes na trajetória de alguém do que premonições e fatalismos, até porque premonições e fatalismos são capazes de esvaziar qualquer ironia, e uma história desprovida de ironia é uma história desprovida de beleza ou, em uma palavra, banal.

Nascido e criado no Rio de Janeiro, Sandro Korn, o hoje MC Sapinho de Israel, é o caçula de quatro irmãos. O pai, dono de construtora, conseguiu proporcionar uma vida bastante confortável à família, que vivia em uma cobertura na Tijuca, até que, em meados de 1996, sofreu um derrame e a situação financeira se complicou. Três anos depois, o filho mais velho, Cláudio, fez a aliyah (palavra hebraica que significa, literalmente, “subida” e designa o processo pelo qual judeus de outras partes do mundo emigram para Israel, isto é, “fazem a aliyah”). Em 2000, foi a vez de Sandro deixar o Brasil para tentar a sorte em Israel. Marcelo, meu shutaf, viria em 2005. Dos irmãos, o único que permaneceu no Brasil foi Osias, que continua vivendo no Rio de Janeiro e ganha a vida comprando e vendendo carros.

Eles enfrentaram a vida a princípio sempre difícil dos ole hadash (imigrantes) recém-chegados. No fim das contas, todos se estabeleceram bem. Atualmente, Claudio trabalha no setor de compras da Danya Cebus, uma multinacional israelense que constrói desde prédios até rodovias e linhas férreas. Marcelo, formado em Engenharia de Sistemas pela Hadassah College, uma ramificação da Universidade Hebraica de Jerusalém, é funcionário da Intel e está prestes a começar o seu segundo curso superior, de Ciência da Computação. Todos os quatro irmãos são flamenguistas, o que talvez explique o fato de serem boas praças.

Quando chegou a Israel, Sandro foi viver no kibutz de Ein Schofet, nas proximidades de Haifa, cidade portuária encravada no norte do país, de braços abertos para o Mediterrâneo. Mas não teve muito tempo para se aclimatar: apenas quatro meses depois de aterrissar, foi chamado para servir o exército. Dos três irmãos que fizeram a aliyah, Sandro foi o único a colocar (ou a ser colocado em) uma farda por causa da pouca idade que tinha ao emigrar, vinte anos. Serviu os dois anos regulamentares em um batalhão de artilharia antiaérea, próximo à fronteira com o Líbano. Por motivos óbvios, uma vez que servir o exército em Israel seguramente não é a mesma coisa que servir o exército no Brasil, ele não é de falar muito sobre esse período de sua vida.

Antes, durante e logo após o serviço militar, Sandro teve dificuldades para se acostumar com o jeito de ser dos israelenses nativos. Cheio daquela franqueza que muitas vezes redunda em grosseria pura e simples, o israelense típico não é exatamente uma pessoa dócil. A convivência é ainda mais complicada, ou simplesmente impossível, se o recém-chegado não domina o hebraico ou, pelo menos, o inglês. “Se você não se acostuma com jeitão do povo israelense, você não aguenta a acaba voltando para o Brasil”, disse-me Sandro. “Aliás, se não fosse pela minha filha, eu já teria voltado.” A menina, Adar, tem três anos e seu nome está tatuado no antebraço esquerdo de Sandro. No antebraço direito, seu nome artístico: Sapinho. Com isso, não é difícil intuir quais são as duas coisas mais importantes para ele.

Após deixar o exército, e sempre que a situação financeira permitia, Sandro aportava no Rio de Janeiro para visitar a família e os amigos. As pessoas mais próximas sempre souberam de seu apreço pelo funk, até porque ele costumava cantar em festas e reuniões de amigos. E foi em 2004, em uma de suas visitas ao Brasil, que as coisas começaram a mudar. Durante a festa de aniversário de um amigo, no Leblon, foi convidado a dividir o palco com o funkeiro Mr. Catra. Bom de improviso, Sandro impressionou. Não demorou muito para que Catra lhe fizesse uma proposta, a de que eles compusessem uma música juntos, misturando o português e o hebraico. A única exigência de Catra era de que a canção versasse sobre Jerusalém, “porque é uma terra santa”. Daí surgiu “Daber she ze anachnu” ou, em bom português, “Fala que é nóis”. Mais conhecida como “Jerusalém”, foi gravada por Mr. Catra, com participação de Sandro, e logo o MC Sapinho de Israel começou a se tornar um nome conhecido. O apelido de infância, Sapinho, foi escolhido como nome artístico, mas com o adendo “de Israel”. “É que já existia o MC Sapão e, afinal de contas, eu já vivia por aqui.”

De volta a Israel, Sapinho conheceu outra figura muito importante em sua carreira: o israelense Gilad Sabach, ou DJ Brasiloca. As circunstâncias foram parecidas com a de seu primeiro encontro com Mr. Catra: convidado para a festa de aniversário de Brasiloca, acabou subindo ao palco e mostrando a que veio. Desde então, o DJ tem produzido as músicas de Sapinho e o convidado para cantar nas festas que organiza. Foi a partir desses dois encontros, com Catra no Brasil e com Brasiloca em Israel, que, nas palavras de Sapinho, “a coisa começou a engrenar”.

Claro que o ritmo de apresentações dos últimos meses não foi conquistado da noite para o dia. Tanto que, mesmo atualmente, quando chega a fazer até três shows em uma mesma noite, Sapinho ainda não pode se dar ao luxo de viver exclusivamente da música. O grosso do orçamento doméstico ele tira de seu trabalho na Smira, empresa onde está há cinco anos. A Smira presta serviço ao governo e é responsável pela segurança dos trens israelenses. “Fiz um treinamento de quatro semanas e comecei revistando mochilas nas estações.” Depois, fazia ronda nos vagões dos trens. Agora, trabalha em uma sala repleta de monitores, observando o movimento de lugares tidos como pontos críticos, isto é, com possibilidade elevada de sofrer alguma espécie de atentado terrorista.

Sempre que volta ao Brasil, Sapinho engrena algumas apresentações em parceria com Mr. Catra. Juntos, eles já cantaram em lugares como Circo Voador, Fundição Progresso e Tijuca Tênis Clube. Além desses shows, a parceria já rendeu uma dúzia de canções, como “Bonde do Elyahu Anavi”, “Retorno de Jerusa” e “Mosaico e o Caldeirão”.

Em novembro do ano passado, Sapinho cedeu uma entrevista em um programa de ritmos latinos da rádio 100 FM, de Tel Aviv. Foi ao estúdio acompanhado pelo DJ Brasiloca e chegou a dar uma palhinha ao vivo. A entrevista por certo o ajudou bastante, tanto que, por esses dias, tem se desdobrado para dar conta de uma agenda que pode chegar a sessenta shows por mês em várias regiões do país, a um cachê médio de 800,00 NIS (algo em torno de R$ 400,00) por apresentação. Como Israel é um país pequeno, é comum que MC Sapinho se apresente, no decorrer de uma mesma noite, em cidades distintas, como Tel Aviv e Haifa.

Sapinho está com a agenda praticamente lotada para o mês de julho. Além dos shows em bares e boates, fará uma apresentação em Jerusalém para um grupo de turistas brasileiros que estarão em Israel na segunda metade do mês. “Quando o assunto é música, eles sempre pedem duas coisas para animar a viagem: pagode e MC Sapinho”, explica. Ele trabalha para que, com o passar do tempo, e em se tratando de música brasileira, o funk seja tão conhecido em Israel quanto o axé. “Israelense vai muito à Bahia fazer turismo. Você pode perguntar por aí. Tudo que é israelense que vai ao Brasil, acaba passando pela Bahia. É por isso que o axé manda tão bem por aqui. Porque é o que eles mais ouvem quando vão ao Brasil.”

São três e meia da madrugada e o público do Rich Bar, em Tel Aviv, não parece nem um pouco incomodado com o atraso de quarenta e cinco minutos que teve de suportar até o início da apresentação. “A gente foi para Haifa fazer um show e se acabou se atrasando um pouco na hora de voltar para Tel Aviv. Mas no final tudo vai dar certo”, disse MC Sapinho quando chegou. E dá mesmo: o lugar quase vem abaixo quando o “Rap das Armas” e uma sequência de outros pancadões de sucesso, incluindo “Jerusalém”, são executados. É a ilustração perfeita daquilo que os funkeiros e seus adeptos, seja no Brasil ou em Israel, costumam dizer: “Demorou”.