Artigo publicado n’O Popular em 30.04.2024.
“Os grandes carnívoros” (ed. Alfaguara) é o novo romance da carioca Adriana Lisboa. Vencedora do Prêmio José Saramago, Lisboa é uma das melhores escritoras brasileiras contemporâneas, autora de uma obra impressionantemente regular e muito, mas muito acima da média. Aliás, não me canso de dizer que, ao receber a supracitada honraria, foi ela quem conferiu prestígio ao prêmio, e não o contrário. Em geral, é assim com os(as) melhores escritores(as).
Alguns dos personagens de “Os grandes carnívoros” são ativistas ambientais, gente que (por exemplo) sabota e incendeia laboratórios que usam animais como cobaias. Na medida em que sou um carnívoro, qualquer coisa que eu diga sobre essas pessoas soaria (na melhor das hipóteses) condescendente ou (na pior) abertamente babaca. Assim, falo do livro, e de como Lisboa consegue desenvolver a narrativa pontuando tais e tais coisas sem, contudo, contaminá-la. É um bom romance, não a porcaria de um panfleto.
Aliás, tanto melhor que, em seu desenrolar, o livro discorra sobre (e descreva/“mostre”) a violência dos humanos contra os humanos, e não “apenas” a violência humana contra os outros animais. O pior ato de violência descrito em suas páginas envolve duas pessoas, e não René Descartes e um cachorro (leia o livro se quiser entender a referência).
A protagonista se chama Adelaide. Ela é uma ativista que, por incendiar um laboratório nos Estados Unidos, cumpriu pena de três anos por lá. Libertada, ela volta ao Brasil e se isola em uma casa na Mantiqueira. A ideia é espairecer e colocar a cabeça no lugar. Mas, claro, a cabeça é teimosa, as pessoas são cretinas, as memórias são dolorosas e a desgraça está sempre à espreita.
Adelaide começa a se relacionar com o senhorio, um sujeito aparentemente legal, embora casado. A Sétima Sinfonia de Beethoven (não seria melhor a Sexta?) ribomba nas páginas. Os corpos se entendem. A ingenuidade da protagonista estridula no campo. E a perversidade humana não demora a se manifestar. De um humano específico, no caso. Não há generalizações fáceis e/ou programáticas no romance.
Em se tratando de Descartes, um efeito colateral da leitura foi revisitar com enorme prazer trechos das “Meditações sobre Filosofia Primeira” (na tradução de Fausto Castilho, ed. Unicamp) e de outros livros dele. É que os tais ativistas “cancelam” Descartes e se apegam a picaretagens como as de Derrida. Não que isso seja importante, claro. Para incendiar um laboratório, as pessoas só precisam de raiva e fósforos, não de uma “fundamentação teórica” consequente (embora julguem tê-la e, em alguns casos, tenham mesmo). Logo, que diferença faz os picaretas que elas papagueiam? E esses momentos de bricolagem pseudofilosófica não atrapalham o romance. Pelo contrário, eles são imprescindíveis para a ótima caracterização dos personagens.
No cenário depauperado da literatura brasileira atual, tomado por panfletarismos de todas as cores e tamanhos, é um alívio ter em mãos um livro como “Os grandes carnívoros”. Adriana Lisboa mostra que é possível conceber uma narrativa literariamente ímpar e politicamente alerta sem apelações e proselitismos toscos. Em outras palavras, ela trata o leitor como um animal inteligente, não como um tonto esperando ser catequizado.