Chineses e ruínas

 

DA AUTOSSUPRESSÃO DA TEORIA DO CONHECIMENTO
À METAFÍSICA DESCRITIVA DE STRAWSON

Intro.

O percurso a ser percorrido neste texto será dividido em dois movimentos. No primeiro deles, discorrerei sobre a crítica feita por Friedrich Nietzsche à metafísica dogmática e ao projeto kantiano no primeiro capítulo de Para Além de Bem e Mal. A ideia é explicitar como se deu a implosão da teoria do conhecimento naquele contexto histórico-filosófico, ocasionando, dentre outras coisas, o surgimento e o recrudescimento do positivismo e do cientificismo. Em vista dos efeitos de tal implosão (ou “autossupressão”, como afirma Jürgen Habermas em Conhecimento e Interesse), sentidos ainda hoje, tentarei arrastar a discussão pelos cabelos até o século XX, expondo que o abismo aberto pela modernidade nunca foi colmatado, e que, dado o desenrolar das próprias discussões filosóficas, ele talvez seja incontornável. Tal contatação, no entanto, não significa necessariamente a débâcle da filosofia enquanto tal, mas, pelo contrário, talvez possa ser encarada como um indício de sua sobrevivência. Para calçar essa hipótese, usarei como exemplo o projeto de metafísica descritiva concebido pelo filósofo britânico Peter F. Strawson na obra Indivíduos.

Talvez inadvertidamente, e segundo o entendimento supracitado, a ânsia delimitadora kantiana teria resultado no estrangulamento das pretensões filosóficas “maiores”, por assim dizer. As “grandes questões” ainda pairam sobre as cabeças de alguns pensadores, mas não passariam de fantasmagorias desligadas de qualquer possibilidade efetiva de (re)apresentação ou reformulação. O vocabulário metafísico restaria esvaziado, e todas as tentativas de reconstituí-lo esbarrariam nos rumos da filosofia contemporânea, por um lado, e nos limites da linguagem humana, de outro. Tropeçaríamos na intraduzibilidade e/ou inacessibilidade daquelas questões, como que alijados do núcleo inquiridor da filosofia tal como ela era ou foi encarada e exercitada até a modernidade. Nesse contexto, a abordagem de Strawson só seria metafísica (se tanto) em um sentido fraco, restrito, castrado.

A argumentação que procuro desenvolver vai, contudo, em outra direção: de que, não obstante a incontornabilidade do abismo (ou mesmo por causa dela), os esforços de Strawson e de outros pensadores nada têm de “menores” ou vazios; de que também incontornável é o impulso para perseguir tais e tais questões fundamentais, ainda que em registros mais pontuais (ligados à filosofia da linguagem, por exemplo) e/ou modestos (relativamente aos grandes edifícios teóricos outrora erigidos e posteriormente bombardeados); e, por fim, de que a insistência e a sustentação desses esforços acabam por salvaguardar a própria dignidade filosófica.

 

1.Nietzsche contra Kant.

A julgar pelo aforismo 11 de Para Além de Bem e Mal, o despertar do sono dogmático referido por Immanuel Kant[1] foi algo buñueliano. Refiro-me aqui, a título de ilustração, a uma sequência do filme O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, 1972), em que um dos personagens desperta de um sonho para se ver dentro de outro sonho. Haveria, por assim dizer, um encadeamento “dormitivo”, no qual o despertar jamais é alcançado, jamais se efetiva. Ou, nas palavras de Rubens Rodrigues Torres Filho em “A virtus dormitiva de Kant”, “a suspeita de que este despertar é uma ilusão, de que com ele se passa um sono mais profundo, ou se começa a sonhar” (TORRES FILHO, 1987, p. 34). Portanto, o filósofo de Königsberg jamais teria se libertado da modorra que o acometia e à filosofia.

Em seu projeto de reelaboração e radicalização do projeto kantiano operado no livro supracitado, Nietzsche enxerga na resposta à questão “como são possíveis juízos sintéticos a priori?” uma tautologia: “Em virtude de uma faculdade”. Para ele, isso não passaria de “niaiserie allemande”, de uma falsa resposta na qual encontramos uma mera “repetição da pergunta”. Em sendo assim, ele propõe a substituição da inquirição por outra: “por que é preciso a crença em tais juízos?”. No entender de Nietzsche, cujo aforismo é traduzido na íntegra por Torres Filho em “A virtus dormitiva de Kant”, trata-se de

conceber que para fins de conservação da essência de nossa espécie tais juízos têm de ser acreditados como verdadeiros; com o que naturalmente poderiam ainda ser juízos falsos! Ou, para dizê-lo mais claramente, e de modo mais grosseiro e radical: juízos sintéticos a priori não deveriam de modo algum “ser possíveis”, não temos nenhum direito a eles, em nossa boca são puros juízos falsos. Só que, por certo, é preciso a crença em sua verdade, como uma crença de fachada e uma aparência, que faz parte da ótica-de-perspectivas da vida. (Ibid., p. 32-33).

Retomando a citação do primeiro parágrafo, Torres Filho fala em “despertar do sono dogmático para cair no sono tautológico”. Eis aí o enredamento buñueliano, tal como procurei descrevê-lo.

A circularidade da coisa diria respeito ao próprio caráter transcendental da filosofia crítica, pelo qual o sujeito cognoscente, “antes de confiar em seus conhecimentos adquiridos diretamente”, precisa se certificar “das condições do conhecimento que é em princípio possível para ele”; no entanto, de que maneira essa faculdade do conhecimento “poderia ser investigada criticamente, se também essa mesma crítica tem de pretender ser conhecimento?” (HABERMAS, 2011, p. 31)[2]. Hegel tampouco escapou da armadilha, tratando, na verdade, de “aprimorá-la”:

Com Hegel, surge o mal-entendido fatal de que a pretensão que a reflexão racional levanta contra o pensar abstrato do entendimento seria sinônima da usurpação do direito das ciências autônomas por parte de uma filosofia que entra em cena, tanto agora como antes, a título de ciência universal. Já o primeiro golpe de vista sobre o progresso científico, realizado independentemente da filosofia, iria desmascarar essa pretensão, como sempre mal-entendida, considerando-a mera ficção. É sobre isso que se ergue o positivismo. (Ibid., p. 55-56.)

Para Nietzsche, e recorro agora à leitura de Scarlett Marton, o que faltou a Kant foi radicalidade: “Ao impor limites ao conhecimento humano, o ‘chinês de Königsberg’ tornou a moralidade indiscutível, restaurou o mundo suprassensível e reintroduziu sub-repticiamente os objetos da metafísica dogmática” (MARTON, 1990, p. 161). O esforço de extirpar o suprassensível da teoria do conhecimento foi comprometido ou anulado na medida em que o mesmo foi eventualmente readmitido na ética por meio da segunda Crítica. Nesta, é como se o suprassensível entrasse por uma janela lateral do edifício kantiano, janela arrombada com um pé-de-cabra chamado imperativo categórico. E, “ao colocar Deus como objeto de crença, [Kant] abriu espaço para que fosse avaliado enquanto valor moral” (Ibid., p. 163). Em outras palavras, Kant teria substituído um dogmatismo por outro, o que justifica aquela imagem do despertar de um sono (ou de uma “modorra”[3]) para cair nos braços de outro(a).

A fim de ilustrar isso, lanço mão de uma das formulações do imperativo categórico: age apenas segundo a máxima pela qual possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” (KANT, 2009, p. 215). Como, por exemplo, jamais mentir: “É, portanto, um mandamento sagrado da razão, que ordena incondicionalmente, não restringido por nenhuma conveniência: [deve-se] ser verídico (honesto) em todas as declarações” (KANT cit. in PUENTE, 2002, p. 73). Em outras palavras, o imperativo categórico comanda que sempre digamos a verdade porque é irracional pressupor que uma mentira qualquer, grande ou pequena, inofensiva[4] ou não, dita por conveniência, possa vir a ser encarada como uma lei universal.

Mais do que isso: na Metafísica dos Costumes, Kant afirma que mentir é uma “rejeição” e uma “destruição da própria dignidade do homem”, e que o mentiroso “tem um valor ainda menor do que se fosse simplesmente uma coisa” (KANT, 2011, p. 358-9). Ou seja, o indivíduo deprimido que, diante de estranhos, procura esconder sua condição (como no exemplo abaixo, na nota 4), ou um policial disfarçado que mente para o chefe de um cartel de drogas a fim de se proteger, armar um flagrante e prender o criminoso, bem, eles são ainda menores do que uma coisa, pois rejeitaram e destruíram a própria dignidade do ser humano enquanto tal.

O absolutismo dessa visão filosófica escancara o dogmatismo fundamental que a anima. Levando-se em conta esse escancaramento, talvez nem seja o caso de dizer, como Marton, que os objetos da metafísica dogmática foram reintroduzidos de forma sub-reptícia. A radicalização dessa proposta por Nietzsche, ainda que mire uma “superação”, uma “transvaloração”, é perpetrada mediante a utilização de um mesmo vocabulário, até porque não temos outro. Além disso, será que o uso de expressões e construções hipotéticas (“supondo que”, “parece-me”, “talvez” etc.) chega a camuflar o teor asseverativo de trechos como “Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força — a própria vida é vontade de poder”, “O que é chamado ‘livre-arbítrio’ é, essencialmente, o afeto de superioridade em relação àquele que tem de obedecer”, “A causa sui [causa de si mesmo] é a maior autocontradição até agora imaginada, uma espécie de violentação e desnatureza lógica” e “Toda a psicologia (…) tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas”?[5]. É difícil ignorar a certeza de alguém que argumenta com um martelo na mão.

Habermas (2011, p. 427) sublinha o fato de que a radicalização empreendida por Nietzsche psicologizou “o nexo de conhecimento e interesse”, convertendo-o “em fundamento de uma dissolução metacrítica do conhecimento em geral”. Com isso, ele concluiu a “autossupressão da teoria do conhecimento” iniciada pelos filósofos idealistas que o antecederam, identificando como inexequível a autorreflexão do sujeito cognoscente, presa na circularidade metacrítica que engendra. Homem de seu tempo, Nietzsche respirou os ares positivistas e também se contaminou.

Abrindo um pequeno parêntese, talvez seja interessante ressaltar a ironia relativa à acusação nietzschiana de falta de radicalidade no pensamento kantiano, pois, nos Prolegômenos, em passagem também referida por Torres Filho (op. cit., p. 37), é exatamente isso que Kant enxerga em Hume, o qual não teria “representado o problema em toda a sua amplidão”, mas “apenas por um lado”, sendo necessário “ir mais longe” do que aquele “a quem se deve a primeira centelha desta luz” (KANT, 2008, p. 17). Nietzsche não parece enxergar centelha alguma na investida kantiana, na tentativa (malograda?) de se firmar um compromisso entre empirismo e racionalismo, e na censura feita tanto ao dogmatismo quanto ao ceticismo — inclusive, como ressalta Torres Filho (op. cit., p. 40), no que percebe ou enxerga como dogmático no próprio ceticismo.

Em se tratando do esforço (de)limitador empreendido na primeira Crítica com relação ao estatuto e aos objetos da metafísica, e dado o recuo ou concessão já citado, procedido na Crítica da Razão Prática pela via da moralidade, talvez não seja exagerado enxergar em Kant aquele que, de fato, filosofou com o martelo: ao inadvertidamente quebrar os joelhos da teoria do conhecimento, o “chinês de Königsberg” abriu caminho para o “mal-entendido” hegeliano e, com isso, para o positivismo e o cientificismo. Mas, tendo em vista a inoperância dos sistemas propostos a seguir, tanto por partidários quanto por opositores do kantismo e do neokantismo, e seja ou não por “culpa” do próprio Kant, é forte a propensão para encarar boa parte dos filósofos surgidos desde então como uma sucessão de “chineses”[6]: o chinês de Rammenau, os chineses de Tübingen, o chinês de Röcken, o chinês da Floresta Negra, os chineses de Frankfurt, e assim por diante. O que uniria essa enorme China filosófica seria a incapacidade de colmatar o abismo aberto nos estertores do século XVIII e ampliado no decorrer do XIX, de superar a deposição (definitiva?) da “rainha”[7].

Em se tratando do chinês de Röcken, dizer ou anunciar a morte de Deus (por exemplo) não leva, por si só, a qualquer superação ou transvaloração. A rigor, não leva sequer a um velório — acaso levasse, é provável que o caixão estivesse vazio.[8] Aqui, abrindo mais um parêntese, lembro do Pai Morto que é arrastado pelos filhos no romance homônimo de Donald Barthelme (itálico do autor):

Morto, mas ainda conosco, ainda conosco, mas morto.
(…)
Nós queremos que o Pai Morto esteja morto. Sentamo-nos com lágrimas nos olhos querendo que o Pai Morto esteja morto — enquanto fazemos coisas fantásticas com as mãos. (BARTHELME, 2015, p. 16-17.)

E mais:

Não gosto disso, disse o Pai Morto.
Do quê?, Julie perguntou. Do que você não gosta, meu querido idoso?
Você estão me matando.
Nós? Nós não. Nós, de maneira alguma. Processos estão matando você, não nós. Processos inexoráveis. (Ibid., p. 216.)

Palmilhando em meio aos estilhaços do idealismo alemão, à carnificina positivista, à subsunção da teoria do conhecimento ao cientificismo, à referida autossupressão da teoria do conhecimento, não é difícil perceber como o vazio deixado por aquela Morte, nos processos instaurados por meio e a partir dela, horrores inúmeros tiveram, têm e terão lugar. Há uma linha reta entre o correr desenfreado das ciências assim divorciadas da teoria do conhecimento, livres de quaisquer fundamentações e anteparos epistemológicos e éticos, e eventos como a Shoah.

Não se trata de lamentar o Falecimento, óbvio. Passado tanto tempo, e conforme demonstrado pelo andamento da própria história da filosofia, o problema que levou àquela autossupressão permanece. Diversos pensadores, como Heidegger e Habermas, tentaram superá-lo com todas as suas forças, caindo em armadilhas outras e/ou esbarrando nos limites impostos pela própria linguagem para significar e ressignificar tais e tais coisas.

Assim, a insistência em se dirigir ao problema talvez seja tão incontornável quanto o abismo aberto por ele. Mas seria um erro encarar isso como uma paralisia. Pois, ainda que os objetivos últimos permaneçam inalcançados (e talvez sejam mesmo inalcançáveis), a filosofia segue lidando com aspectos inescapáveis da vida e do pensamento humanos. A precarização e o eventual “fracasso” desses esforços não podem ser confundidos com uma indignidade, e é isso que tentarei demonstrar a seguir, usando Strawson à guisa de exemplo.

 

2. O chinês de Oxford circula pelas ruínas.

Peter Frederick Strawson (1919-2006) é um caso sui generis no âmbito da filosofia contemporânea. Embora seja identificado com o chamado “grupo de Oxford” e tenha publicado trabalhos importantes no campo da filosofia analítica, dentre os quais se destaca o clássico artigo “On referring” (1950)[9], ele também escreveu um autoproclamado “ensaio de metafísica descritiva” intitulado Indivíduos (1959).

A metafísica descritiva, conforme ele explica na introdução do livro, “contenta-se em descrever a estrutura real do nosso pensamento sobre o mundo”, ao passo que o que chama de “metafísica revisionista” tenta “produzir uma estrutura melhor”. Strawson salienta que nenhum metafísico foi, “tanto em intenção, como de fato, totalmente uma coisa ou a outra”, mas identifica Descartes, Leibniz e Berkeley como “revisionistas”, e Aristóteles e Kant como “descritivistas” (STRAWSON, 2019, p. 13). Em seguida, ele procura distinguir a metafísica descritiva da análise filosófica, lógica ou conceitual, e o faz ressaltando seus âmbito e generalidade, pois ela visa “revelar os aspectos mais gerais da nossa estrutura conceitual”. Tal estrutura não se mostra “na superfície da linguagem de imediato, mas jaz submersa” (Ibid., p. 14). Como se pode observar, Strawson advoga a existência de “um núcleo central maciço do pensamento humano”, o qual

não tem história — ou nenhuma história registrada nas histórias do pensamento; há categorias e conceitos que, no seu caráter mais fundamental, não mudam nada. Obviamente, eles não são as especialidades do pensamento mais refinado. São os lugares-comuns do pensamento menos refinado e são, contudo, o núcleo indispensável do equipamento conceitual dos seres humanos mais sofisticados. É com eles, suas interconexões e a estrutura que formam, que uma metafísica descritiva estará primariamente preocupada. (Ibid., p. 15.)

Essa concepção talvez possa ser identificada por alguns com aquilo que, no aforismo 354 d’A Gaia Ciência, Nietzsche chama de “metafísica do povo”, típica dos “teóricos do conhecimento que se enredaram nas malhas da gramática” e ancorada em ficções tais como “a oposição entre sujeito e objeto”[10] (NIETZSCHE, 2012a, p. 223). No entanto, ao se concentrar nos pressupostos para a identificação dos particulares (sendo que os objetos materiais seriam os particulares básicos) e nas relações entre universais particulares, Strawson aponta para o mundo, procura dizer algo acerca dele e das maneiras como nos relacionamos com ele:

(…) Nós reinterpretamos a tarefa principal do filósofo (a tarefa metafísica) como a de responder à pergunta: quais são os conceitos e categorias mais gerais que organizam nosso pensamento, nossa experiência, acerca do mundo? E como se relacionam entre si dentro da estrutura total do pensamento? Ao responder a essa questão, respondemos incidentalmente à questão na sua forma mais geral, como realmente concebemos que o mundo é, ou qual é realmente a nossa ontologia básica (a ontologia em atividade). (STRAWSON, 2002, p. 54.)

Essa “ontologia em atividade” é algo que transcende as “malhas da gramática”. Strawson enxerga a ontologia, a epistemologia e a lógica como “três aspectos duma única investigação unificada” (Ibid., p.54).

Embora utilize termos e expressões como “tarefa metafísica” e “ontologia”, ele circula por um ambiente comparativamente bem mais modesto e aferrado à dimensão pragmática da linguagem do que, por exemplo, alguém como Descartes. São “chineses” com pretensões distintas: o francês se propõe a construir toda uma malha ferroviária, ao passo que o britânico se limita a mapear as ferrovias existentes e as paisagens que incidentalmente consegue observar. Enquanto “descritivista”, Strawson não intenta conceber um sistema que revise a nossa estrutura conceitual ou busque criar algo “novo”. Os trilhos já estão colocados.

Reitero: essa postura modesta talvez seja incontornável, dada a implosão da teoria do conhecimento e os rumos tomados pelas ciências não apenas destituídas de qualquer direcionamento filosoficamente consequente, mas, ao que tudo indica, até mesmo infensas a qualquer coisa do tipo. Em um certo sentido, a autossupressão da teoria do conhecimento teve como resultado não a saudável delimitação pretendida por Kant, mas o estrangulamento das pretensões “maiores” da filosofia. Não custa repisar que as tentativas posteriores a Kant de reformulação (por Hegel, Nietzsche, Heidegger e Habermas, por exemplo) não alcançaram o que pretendiam alcançar, mas, sim, ensejaram descarrilhamentos diversos.

No entanto, seria tolice deplorar essas e outras tentativas, bem como os esforços mais modestos (de novo: comparativamente) de “chineses” como Strawson. Há bastante tempo, os pensadores circulam, andrajosos, pelas ruínas dos grandes edifícios filosóficos, os quais eles mesmos, não raro de maneira inadvertida, trataram de implodir. Não há indignidade nisso, não há indignidade nesse palmilhar andrajoso. E temo que não haja como evitá-lo.

Talvez ele seja algo que poderíamos chamar de um impulso — no que o “chinês” de Röcken sorriria — ou, quem sabe, de um destino — no que o “chinês” da Floresta Negra se regozijaria. Aliás, em se tratando deste último, sua expectativa de ecos nietzschianos (na medida em que aponta para a superação das dicotomias) vem a calhar para os rumos da discussão, além de ser um tanto comovedora:

Talvez exista um pensamento fora da distinção entre racional e irracional, mais sóbrio ainda do que a técnica apoiada na ciência, mais sóbrio e por isso à parte, sem a eficácia e, contudo, constituindo uma urgente necessidade provinda dele mesmo. Se perguntarmos pela tarefa deste pensamento, então será questionado primeiro, não apenas este pensamento, mas também o próprio perguntar por ele. (…) (HEIDEGGER, 1979, p. 81.)

Visto por esse lado, isto é, pelo lado da “urgente necessidade provinda dele mesmo [pensamento]”, talvez não haja, afinal, nada de modesto nos esforços metafísico-descritivos de Strawson. Ao mesmo tempo em que sobrevive como pensador, ele não se deixa esmagar sob o peso das grandes questões e tampouco se ocupa de perquirições menores ou marginais. Por tudo isso, a insistência em referir-se a essa “estrutura submersa”, em procurar desvelar a nossa “ontologia básica”, é uma tarefa que nada tem de “grosseira”.

E, mesmo que não seja o caso, mesmo que Strawson não passe de mais um exemplo daquela “raça dura e laboriosa” referida por Nietzsche (2012b, p. 20), a verdade é que não chegaríamos a lugar algum sem “operários” como ele. Há, sim, muito o que ver e apreender por essa via que se coloca explícita e nomeadamente como descritiva, ou seja, não explicativa.

Em suma, ao sustentar o caráter descritivo de sua metafísica (e ao insistir em utilizar o termo em um momento que ele havia sido desterrado do vocabulário filosófico), Strawson acaba por justamente salvaguardar a dignidade filosófica. O que ele busca, na medida do possível e do factível, é a manutenção de uma discussão fundamental. Dada a precariedade do nosso tempo e, a rigor, de qualquer tempo, e não obstante os becos sem-saída com os quais os filósofos se depararam e continuam a se deparar[11], é possível que o sentido esteja em tal manutenção, esteja nesse esforço contínuo de adensamento e clarificação conceituais.

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NOTAS

[1] No prefácio dos Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura que Queira Apresentar-se como Ciência, a célebre admissão de Kant: “Confesso francamente: foi a advertência de David Hume que, há muitos anos, interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações no campo da filosofia especulativa uma orientação inteiramente diversa” (KANT, 2008, p. 17).

[2] Convém ressaltar que Habermas está, no trecho mencionado, ecoando um argumento sustentado por Hegel no início da Fenomenologia do Espirito. Não por acaso, a seção do livro Conhecimento e Interesse da qual foi retirada a citação se intitula “A crítica de Hegel a Kant: radicalização ou superação da teoria do conhecimento”.

[3] Conforme aponta Torres Filho, o termo usado por Kant na passagem mencionada dos Prolegômenos é “Schlummer”, que também pode ser traduzido como “sono pesado”, “letargia”, “modorra”.

[4] Um exemplo extremo: dois vizinhos se encontram no elevador. Não são amigos ou próximos. Por educação, quase como um reflexo social, um pergunta para o outro: “Tudo bem?”. E esse outro não está nada bem, passa por dificuldades pessoais e profissionais, mas responde: “Tudo ótimo. E com você?”.

[5] NIETZSCHE, 2012b, p. 19, 23, 25, 27.

[6] O teor racista da tirada nietzschiana soa inaceitável para a contemporaneidade, mas, por outro lado, a imagem é boa demais para não ser reaproveitada.

[7] Convém observar que, no prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant já se refere ao status majestático da metafísica como algo já superado (grifos meus): “Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada de rainha de todas as outras” (KANT, 2010, p. 3).

[8] E, mesmo que víssemos ali o tal Cadáver, Nietzsche talvez não pudesse ser chamado de deicida, da mesma forma como não é um homicida alguém que, passeando pela rua, tropeça em um defunto.

[9] O artigo é uma crítica da teoria das descrições definidas de Bertrand Russell. Nele, Strawson distingue entre pressuposição e implicação. Grosso modo, ele institui três dimensões expressivas: sintática (relativa à maneira como as expressões são formadas), semântica (relativa ao significado das expressões) e pragmática (relativa ao uso). O significado de uma expressão linguística é, portanto, representado pelos conjuntos de regras, convenções e hábitos que, por assim dizer, “disciplinam” o seu uso. Há, portanto, uma distinção entre uso e significado: este é algo que atribuímos à expressão de maneira intrínseca; aquele, algo que depende do falante e do contexto da enunciação. Com isso, Strawson afastou a filosofia da linguagem da filosofia da lógica.

[10] A identificação e reidentificação de particulares são cruciais na descrição de Strawson do nosso esquema conceitual. A condição de possibilidade para a identificação dos particulares espaço-temporais é o esquema conceitual, cujas unicidade e singularidade possibilitariam a comunicação, dada a já citada imutabilidade das categorias e conceitos em “seu caráter mais fundamental”.

[11] “Em que círculo movemo-nos e, na verdade, de maneira inevitável?”, pergunta o mesmo Heidegger (Ibid., p. 81).

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BIBLIOGRAFIA

BARTHELME, Donald. O Pai Morto. Tradução: Daniel Pellizzari. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. Tradução: Luiz Repa. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
HEIDEGGER, Martin. “O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento.” Em Conferências e Escritos Filosóficos. Coleção Os Pensadores. Tradução e notas: Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2010.
_______________. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução: Guido Antonio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial; Barcarolla, 2009.
_______________. A Metafísica dos Costumes. Tradução: José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2011.
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_______________. “Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens.” Tradução: Theresa Calvet de Magalhães e Fernando Rey Puente. Em PUENTE, Fernando Rey (org.). Os Filósofos e a Mentira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
MARTON, Scarlett. Nietzsche – Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras (edição de bolso), 2012a.
___________________. Além do Bem e do Mal. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras (edição de bolso), 2012b.
STRAWSON, Peter Frederick. Indivíduos – Um Ensaio de Metafísica Descritiva. Tradução: Plínio Junqueira Smith. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Ensaios de Filosofia Ilustrada. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

 

[Imagem: Pablo Palazuelo – Omphale V.]