Artigo publicado hoje n’O Popular.
Eu não estava em Goiânia no ano de 1987. Entre fins de 1986 e meados de 1988, eu, meus pais e irmão vivemos no interior do Pará. Assim, acompanhamos à distância, preocupados com os parentes e conhecidos, as notícias sobre o acidente radiológico ocorrido em Goiânia. Passada a tragédia, ficou a lembrança da mesma, o seu rumorejar, a sua forma acoplada, por assim dizer, à forma da cidade, como uma sombra azulada recendendo a morte. Restou, conforme o verso do escritor goiano Wesley Peres, uma “ferida aberta no organismo da cidade”. No livro O Corpo de uma Voz Despedaçada (ed. Martelo), ele interroga essa sombra escarificadora.
Não é a primeira vez que o autor manipula literariamente o Césio 137. O “cancro azul” se faz presente no romance As Pequenas Mortes (Rocco, 2013), por exemplo, em que o próprio corte azulado das páginas parece prestes a sangrar os nossos dedos. É curioso como a escrita de Wesley têm esse efeito físico; para um psicanalista, ele é bem direto, ciente de que a “palavra vive o que ela morre”, da carne “nada abstrata” que “confere larvas à escritura-corpo”, de que é “preciso dar corpo à voz eviscerada em pedaços”, às “chagas da menina expostas entre bonecas” e à “iminência da morte maldorosa” — referência lautreamontiana a Leide das Neves, uma das vítimas fatais do acidente radiológico.
Hoje, creio, poucos se lembram de que o caixão de Leide das Neves foi apedrejado por uma horda assustada e desesperada, naquilo que talvez seja um dos desdobramentos mais chocantes da tragédia do Césio. “Culpada”, escreve Wesley, “esse o veredicto dado pelo polvo de mãos alando e espedaçando lápides sobre o caixão da menina eviscerada pelo azul que não se vê”. Polvo: o povo e seus muitos braços e mãos que atiram pedras. Assim “devorada de azul e pedras e vitupérios”, Leide foi instada pelo “polvo” a morrer “uma segunda vez”. Em meio à tragédia, a turba assassina uma defunta. Diante disso, resta apenas “o consolo que a morte nos sabe”, traduzido pela “fala infectada de afeto” do poeta.
Diante da morte do outro (que é também um “eutro”, pois nele nos enxergamos e por isso o rejeitamos, com pedras nas mãos), o povo diz “não” da mesma forma como, por obra e desgraça do câncer e da vida (morte em andamento), uma “molécula diz não a outra molécula e a morte principia a destecer a colcha”. Aqui, a referência óbvia é a Clarice Lispector, e outra grande qualidade da poética de Wesley é o constante diálogo — jamais gratuito — que ele estabelece com o “barulho das vozes” de autores como James Joyce (cujo Dedalus esteve em Dublin e “andarilha” por Goiânia), Jacques Lacan (“sonho em carne viva”), Mallarmé, Novalis, Arseni Tarkóvski e o já citado Conde de Lautréamont.
Esse “Corpo” poético é trespassado pela tragédia concreta e, assim eviscerado, questiona a própria possibilidade de cantá-la. Ele procura pela “fórmula precisa, exata, / para dizer o nome do que não é nome”. Graças a essa autoconsciência, não há versos pedestres, sentimentais, mas a memória da carne que, em contato com a rarefação ambiente, debate-se e apodrece na cidade e na memória da cidade — “memoricidade”. Afinal, a “morte não é uma imagem, senão uma imagem rasurada rastejando pelas vísceras da palavra e do corpo”.