Artigo publicado hoje n’O Popular.
Um tio da minha esposa faleceu há alguns dias. Covid-19. Ficou quase vinte dias hospitalizado, vários deles entubado. Não pôde se despedir da esposa, dos filhos, de ninguém. Não houve velório. E não puderam enterrá-lo no jazigo da família. A viúva, acompanhada por alguns parentes, poucos, foi ao cemitério. A paisagem era de covas abertas, aquela infinidade de bocas escancaradas para o nada, como se o próprio chão estivesse estupefato, aterrorizado.
Isso foi na segunda-feira da semana passada. Fazia sol em São Paulo. Um belo dia de outono. E a tia observou uma quantidade enorme de enterros ocorrendo às pressas, um atrás do outro, como se acompanhasse uma linha de montagem da morte, ou uma linha de desmontagem, de descarte. Ela pôde observar isso porque a cova destinada ao marido era estreita demais. Então, teve de esperar que outra cova fosse designada ao corpo (creio que o alargamento da primeira também foi cogitado).
Como se não bastasse, ela ainda assimilava o soco sofrido na véspera: por engano, foi chamada ao hospital com a informação de que o marido se recuperara e estava na enfermaria; lá chegando, soube da verdade. Do alívio à dor extrema. Do esboço de um sorriso ao soco no meio do peito. Cada morte arrasta outras consigo, literais e não literais, porque eu não saberia dizer se essa mulher continua viva depois de tudo isso. Não sei se eu continuaria.
E a cova estreita demais? Os coveiros, cavando sem parar há meses, cavando cada vez mais, exaustos, braços e costas moídos, as juntas estalando, mãos estouradas, as narinas entupidas com o cheiro da terra e da morte, ouvidos zunindo com o choro e os berros, os olhos ardendo com o que veem, não querendo saltar das órbitas, mas, sim, mergulhar no aconchego interior, desaparecer crânio adentro — ora, é compreensível que os coveiros tenham calculado mal, cavado às pressas, algo do tipo. Quantas covas cada um deles cava por dia, todos os dias? Haverá espaço para todas elas? E se todas precisarem ser alargadas? E se não tivermos espaço físico para todos os nossos mortos?
Criança ainda, crescendo em uma cidadezinha no interior de Goiás, lembro de ir a um enterro e olhar ao redor. Os limites do cemitério eram precisos. Contando as pessoas presentes, tentei calcular se todas caberiam ali quando chegasse a hora. Não me parecia possível. Seriam enterradas umas sobre as outras? Eu me lembro da terra molhada, escorregadia, e do cheiro que emanava. Não era um dia ensolarado. Havia chovido. Lembro da lama nos solados dos meus sapatos. Lembro de não saber onde colocar as mãos. Lembro de olhar para os familiares do morto e pensar que eles também não pareciam saber; seus movimentos eram estranhos, antinaturais, convulsionados. A morte exige muito do corpo de quem continua vivo, de quem encara a boca aberta no chão, de quem testemunha a descida.
Talvez a cova estreita seja um apelo inconsciente dos coveiros. Eles não aguentam mais. Talvez a estreiteza seja uma forma de dizer isso, de se recusar a enterrar mais corpos. Chega. Mas a doença não trabalha assim. Os criminosos que permitiram à doença escalar com tamanha ferocidade não trabalham assim. Talvez sejam eles os alargadores de covas. Alargam e, covardes, desviam os olhos. E aqui nos deixam, sozinhos com os nossos mortos, à beira da enorme cova estreita que se tornou esse país.