Artigo publicado hoje n’O Popular.
Volta e meia, exasperado com o andamento das coisas, digo para os conhecidos: “Este país já era”. Às vezes, mais exasperado do que o normal (e qual seria o “normal” a essa baixeza das coisas?), digo que o Brasil nunca existiu, que ele não passa de uma ficção muito mal elaborada, de uma colcha de retalhos costurada de forma canhestra por mãos inábeis, de um amontoado de ideários míopes e culturas abastardadas que só vieram aqui para matar e, sobretudo, para morrer. Talvez eu não devesse me referir dessa forma ao nosso Não País, tendo em vista o avanço de certo patriotismo adoecido, verificável na massa de zumbis que traja camisas amarelas da CBF, marcha diante de réplicas toscas de Estátua da Liberdade, aplaude atos racistas perpetrados por autoridades e alimenta o neointegralismo bolsolavista que nos devora e apodrece por dentro — este país já era.
Ou melhor: talvez seja exatamente esse o momento de me referir a esse estado de canibalização da (in)consciência nacional, em que a mera ação de ligar a televisão para assistir ao noticiário se tornou um ato de bravura ou burrice, a depender do que agredirá os olhos dos que ainda conservam um mínimo de humanidade no coração. Quando era criança, ali por 1989, lembro de ouvir especialistas se referindo à década de 1980, marcada pela crise econômica e pela hiperinflação, como a “década perdida”. Olhando para o Brasil atual e para o que nos espera a curto e a médio prazos, só consigo pensar que nos tornamos o país perdido. Não somos o único, muitos outros têm se dedicado ao esporte de incinerar a própria alma, mas é onde eu vivo e provavelmente morrerei, é o que tenho para hoje e, quem sabe, amanhã. Que a terra nos seja leve.
Então, ligo a televisão não para me aventurar nas notícias, mas para me distrair. Vendo uma série passada em um presente alternativo e obscuro, Watchmen, eu me pego rindo sozinho porque não é possível que mesmo aquele mundo calcado na paranoia e no medo pareça, apesar de tudo, menos distópico do que o nosso. A que ponto chegamos, não é mesmo? Não cairei na besteira de usar o clichê segundo o qual “a realidade ganha fácil da ficção”, porque isso é algo evidente desde que o mundo é mundo e a ficção é ficção. O “trabalho” da ficção nunca foi o de “ganhar” da realidade, mas de representa-la até onde e como for possível e, quando necessário, perverter ou subverter determinados aspectos dela. Ademais, a ideia de que seja possível acessar diretamente o “real” é uma impossibilidade epistemológica: há sempre mediações, por assim dizer, a começar pela própria linguagem de que dispomos ou que usamos para dispor (d)o mundo.
Watchmen é uma série televisiva que parte (é uma espécie de sequência) da graphic novel homônima criada por Alan Moore e Dave Gibbons nos anos 1980, uma obra-prima. Uma sensação recorrente nos quadrinhos e na série é: este mundo já era. Claro, já estivemos aqui antes. Inúmeras vezes. Na primeira metade do século passado, por exemplo, quando milhões e milhões morreram nas trincheiras e nos campos de extermínio. Não há nada de novo nessa sensação, assim como nada há de novo na estupidez assassina (genocida?) que volta a dominar o sombrio espírito do tempo.