Texto publicado hoje no jornal O Popular.
Não sei se acontece o mesmo com vocês, mas 2016 me deixou exausto. Foi o ano em que o Brasil exibiu, pela enésima vez e de inúmeras maneiras diferentes, a sua capacidade de ser Brasil. Como dizem por aí, este país não é para amadores. Sempre que ensaiamos um salto, ele nos puxa, segura, amarra. Talvez a gravidade aqui seja de outra ordem, não sei. Mas tudo isso me dá o que pensar.
Há poucas coisas seguras que podemos afirmar sobre o Brasil. Uma delas é um clichê: não sabemos votar. Eu, você, todo mundo. À direita, à esquerda, acima e abaixo, temos o péssimo hábito de eleger demagogos, marginais, fascistas, idiotas e bandidos em geral. Talvez sejam os jingles de campanha. Talvez não estejamos interessados, ao menos até que a fossa estoura e os excrementos inundam tudo, chegando (de novo) aos nossos pescoços. É quando voltamos a dar a mínima.
Fico pensando no aforismo 156 de Além do Bem e do Mal, de Nietzsche: “A loucura é algo raro em indivíduos – mas em grupos, partidos, povos e épocas é a norma”. Nietzsche é um filósofo tão célebre quanto incompreendido, mas isso vale para todos os grandes pensadores – vide as besteiras que dizem por aí acerca de Platão e Maquiavel, para citar dois exemplos óbvios; já ouvi gente falando de Sócrates como se ele fosse uma espécie de precursor do kardecismo, ignorando os contextos histórico e filosófico, o teor de suas alegorias e a luta anímico-política na qual estava inserido (e que acabou por matá-lo).
Voltando a Nietzsche, e apenas para fundamentar melhor o motivo da citação, ele explorou como poucos a beleza raivosa do aforismo, que, parafraseando/pervertendo Cortázar, consiste em vencer o leitor por nocaute. Para alcançar uma compreensão mínima do Brasil, trepidante, contraditório, violento e não raro repugnante como é, acredito que a melhor forma seria por meio de aforismos. Não me lembro de ninguém que tenha tentado. Em vez disso, persistem o barroquismo vazio, o materialismo histórico de quinta categoria e/ou a negação pura e simples de qualquer tentativa séria de compreensão.
Em geral, pior do que não pensar, o brasileiro evita pensar a si próprio. Falamos do outro como se fôssemos todos estrangeiros e observássemos o circo em chamas a uma grande distância, usando uns binóculos velhos de lentes rachadas. A essência do fogo nos escapa. A verdade do outro nos parece alienígena. Formamos um arquipélago de ilhas autistas, exceto quando vestimos as mesmas cores e bradamos as mesmas cretinices, as quais, em geral, dizem respeito não a uma tentativa de entender a situação em que nos metemos, mas, sim, a uma busca por bodes expiatórios, a uma diferenciação, uma separação no melhor estilo “nós contra eles”, quando, na verdade, nós somos eles e vice-versa.
Entendo a resistência que muitos oferecem à reflexão e à autorreflexão. Juro que entendo. Pensar é difícil. “Como tornamos tudo claro, livre, leve e simples à nossa volta!”, escreve Nietzsche no mesmo livro citado há pouco (#24), com furiosa ironia. Ocorre que nada é simples, a começar por nós mesmos e o país em que vivemos. Há questões irrespondidas que persistem desde sempre. Pior: questões ainda por formular. Não é possível criar bases para uma vida política saudável sem buscar por essas questões que levem a um entendimento de quem somos, do que queremos e onde vivemos. Antes de tatear cegamente por respostas, o brasileiro precisa atentar para a dignidade do ato de perguntar. A não ser que estejamos cansados demais para isso. Se for o caso, a única coisa a fazer é sentar e esperar que as chamas nos alcancem.