O divórcio entre filosofia e política tem uma data de nascimento, a qual, ironicamente, foi também a data de uma sentença de morte: o dia em que Sócrates foi julgado e condenado a beber cicuta. Logo no começo de Filosofia e política¹, Hannah Arendt explicita as consequências disso: ali, Platão desencanta-se com a vida na polis e, uma vez que Sócrates não conseguiu convencer os juízes a poupá-lo, com a própria validade da persuasão, o que equivalia a renegar a maneira como se fazia política em Atenas. Assim, Platão passou a rejeitar a doxa (opinião) frontalmente, com todas as forças, e a ansiar por padrões absolutos, os quais se tornariam o norte de sua filosofia a partir de então. Como resultado disso, teríamos em Platão, nas palavras de Arendt, “o primeiro a usar as ideias para fins políticos, isto é, a introduzir padrões absolutos na esfera dos assuntos humanos” (p. 92).
Arendt sublinha o descompasso entre os filósofos e a polis, descompasso cujo paroxismo está nos próprios julgamento e morte de Sócrates. Aí está explícito o fato de que a cidade “não é um lugar seguro para o filósofo”, no sentido de que ela não se ocuparia ou se preocuparia em preservar a memória do filósofo. Portanto, é no contexto mesmo do impacto causado pela condenação e pela morte de Sócrates que podemos vislumbrar o que moveu Platão dali em diante: diferentemente da opinião (ou preconceito) corrente na polis, o filósofo não seria um sophos, isto é, um “sábio”, alguém preocupado com as grandes questões, mas incapaz de se ocupar da vida prática da cidade, uma figura, portanto, algo ridícula (do ponto de vista dos demais) ou passível de ser ridicularizada, “inútil”. Grosso modo, Platão pensava que era justamente por estar preocupado com as grandes questões que o filósofo poderia acessar a ideia do bem (a mais alta de todas) e, com isso, estar apto a governar a cidade.
Ocorre que a própria estrutura política da cidade desfavorecia o trabalho filosófico, uma vez que, quando o filósofo ia até os seus concidadãos e expunha a sua verdade (a qual, conforme Platão, era o oposto da mera opinião), esta era ouvida como uma opinião qualquer, não como uma verdade. Havia, portanto, aquele enorme e já citado descompasso: como o filósofo poderia fazer com que os seus concidadãos tocassem o eterno (domínio da verdade) se estavam por demais aferrados ao temporal (domínio da opinião)? Na verdade, o próprio método socrático de pensar (dialética) ia na contramão do que então se praticava na polis, ainda que o próprio Sócrates não considerasse a dialética “o oposto ou mesmo a contrapartida da persuasão” (p. 96). Em seu trabalho obstetrício, “maiêutico”, o que Sócrates pretendia era que cada interlocutor descobrisse a verdade inerente à sua própria opinião, porque assim (e citamos Hannah Arendt mais uma vez) a cidade se tornaria mais verdadeira à medida que cada cidadão parisse as suas verdades (p. 97). Aqui, a diferença entre Sócrates e Platão se torna muito evidente: Sócrates não tinha a intenção de educar os cidadãos, dizer verdades filosóficas e, em última instância, governar a cidade, mas, sim, agir como um “moscardo” e, por meio do diálogo insistente acerca de algum tema, isto é, por meio da dialética, procurar trazer à tona (revelar) a verdade inerente à doxa de cada um.
Em meio a tudo isso, e dada a natureza de suas conversas, Sócrates parecia muito ligado à ideia de formar uma comunidade em Atenas, isto é, fazer com que seus cidadãos se distanciassem da competição feroz que grassava entre eles e que era uma das razões pelas quais a cidade decaíra tanto desde a morte de Péricles. Portanto, o tipo de diálogo mantido por Sócrates não era da mesma natureza que os diálogos mantidos pelos demais, nos quais havia um espírito combativo e o “melhor” (o mais persuasivo) se sobressaía, para a inveja dos outros. Aqui, é bom lembrar que a ideia de doxa não envolve apenas o termo “opinião”, mas, também, “glória” e “fama”, visto que cada cidadão, ao participar da vida política da cidade e se mostrar mais persuasivo que os demais, isto é, fazer valer a sua opinião, destacava-se da maioria. Não havia, portanto, um espírito de comunidade ali, onde (recorrendo a Aristóteles) os cidadãos, por mais diferentes que fossem entre si, de certa forma se igualassem politicamente por meio da amizade, em vez de um procurar se sobressair sobre ou em detrimento dos outros. O que acontece entre amigos é que um procura compreender a verdade do outro, isto é, enxergar o mundo do ponto de vista do outro. Tal esforço compreensivo parecia não ter lugar naquela Atenas (ou em qualquer outro lugar de que se tem notícia).
Em um texto intitulado O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política², Hannah Arendt traça um raciocínio que, muito embora diga respeito a outro contexto histórico (explicitado no título) e partindo do pensamento de outro filósofo (Karl Jaspers), talvez caiba aqui e nos ajude a esclarecer melhor esse ponto:
(…) A atitude adequada do homem filosófico na nova situação global é a da ‘comunicação irrestrita’, a qual supõe uma fé na compreensibilidade de todas as verdades, junto com a boa vontade de ouvir e revelar, como condições primárias do autêntico convívio humano. A comunicação não é uma ‘expressão de ideias ou sentimentos, de forma que seria apenas secundária a eles; a própria verdade em si é comunicativa e desaparece fora da comunicação. O pensar, na medida em que tenha alguma pretensão de atingir a verdade, deve necessariamente desembocar na comunicação, se torna prático, não pragmático. É uma prática exercida entre homens, e não tanto a atividade de um indivíduo em sua solidão voluntária. (…)
Mesmo em sua “solidão voluntária”, é impossível para o homem estar só, posto que ele está sempre consigo mesmo. Tanto que, para Sócrates, era fundamental estar de acordo consigo mesmo, isto é, não se contradizer, ter consciência de si para, só então, ter consciência do outro, chegar até o outro. O que Aristóteles depois chamaria de axioma da contradição parece estar, de certa forma, presente em Sócrates, na ideia de que vivemos com os outros, mas também (e em primeiro lugar) com nós mesmos. Pensando dessa forma, se vivemos com nós, isto é, se mesmo sozinhos não somos um, se nem mesmo distantes dos outros estamos de fato sós, qualquer ideia que negue a pluralidade é quimérica, irrealizável. Dizendo de outra forma, se viver com os outros começa por viver consigo, só está apto a viver ou conviver com os outros aquele que consegue primeiro viver ou conviver consigo. Mesmo quando estamos sós e falamos sozinhos ou, melhor dizendo, dialogamos com nós mesmos, não estamos de fato separados do mundo exterior, plural, dos nossos semelhantes. Seguindo essa linha de raciocínio, é lícito dizer que nós agimos politicamente (e, portanto, transformamos o mundo) mesmo quando nos isolamos dos outros e optamos pela inação. Sócrates acreditava que a virtude podia ser ensinada justamente por ter consciência de que, mesmo sozinhos, somos plurais, e, sendo plurais, agimos no mundo mesmo quando intentamos não fazê-lo; ter consciência disso seria um passo imprescindível para aprender a viver consigo e, por conseguinte, com os outros.
Por outro lado, é importante observar como Sócrates (apesar de não pretender fazê-lo) acabava por confrontar a polis justamente quando buscava o seu aprimoramento e o de seus cidadãos. Pela sua própria natureza interpelativa e questionadora, o método socrático trazia em si o germe da destruição da doxa. De que forma? Uma vez que a busca pela verdade inerente à doxa de cada um redundava na aporia, até porque Sócrates não estava interessado em definir coisa alguma (não custa lembrar que ele afirmava só saber que nada sabia), mas em fazer o outro perceber o quão frágeis eram as definições de que dispunha e lançava mão, é interessante observar que, pelo próprio caráter inconclusivo da discussão, e uma vez implodidas as “certezas”, nada era colocado no lugar daquela doxa posta em xeque ou simplesmente descartada. Assim, ficava mais uma vez evidente o descompasso entre a filosofia e a política: se a política era em muito baseada na doxa, no seu fortalecimento (ainda que superficial, ou meramente retórico), vê-la esvaziada daquela maneira por um filósofo ou, do ponto de vista dos outros, sophos certamente era algo desinteressante para o status quo (se me permitem o latinismo). Por mais que a intenção de Sócrates fosse, nas palavras de Arendt, “tornar a filosofia relevante para a polis” (p. 106), aquele não era um momento oportuno porque, conforme observamos acima, Atenas estava em franca decadência desde a morte de Péricles e a derrota na Guerra do Peloponeso. Boa parte de seus cidadãos encarava o filosofar, para dizer o mínimo, com desconfiança. Não por acaso, a filosofia pós-platônica vai se distanciar dos assuntos da cidade. Mais do que isso: após a morte de Sócrates e com a postura adotada por Aristóteles, o abismo entre a cidade e o filósofo ou, mais propriamente, entre a política e a filosofia vai se acentuar tanto que o pensador acabará assumindo justamente o papel que antes lhe tentaram impingir, qual seja o de alguém marginal, isto é, que se mantém à margem dos assuntos da polis.
O destino de Sócrates encerrou ainda uma outra contradição entre política e filosofia. Tal contradição estaria expressa na própria condição do filósofo, de alguém com acesso a coisas supra-humanas ou para além do meramente humano, mas que, mesmo assim, não deixava de ser um homem. Logo, o conflito entre o mundo sensível e o mundo inteligível, para usar a terminologia platônica, faz-se presente desde a interioridade do próprio filósofo: seu corpo está no mundo sensível, mas sua alma ascende ao mundo inteligível, e, quanto mais ela ascende, mais divorciada está do corpo, cujos impulsos e desejos serão controlados “como um senhor governa os seus escravos” (p. 107). É de se imaginar, portanto, que, se um dia chegasse a governar a cidade, o filósofo governaria os seus concidadãos da mesma forma como governa o próprio corpo, e a sua tirania seria justificada tanto pelo fato de ela ser o “melhor governo”, isto é, o governo de alguém que conhece o bem, quanto porque esse governante seria legítimo, pois, mesmo sendo um mortal como os demais, desprezou o corpo e seguiu os ditames da alma, ou seja, nunca traiu a sua condição de filósofo. Arendt chama a atenção para o fato, em geral eclipsado pelo choque causado pela metáfora platônica no âmbito das religiões, de que o que engendrou a formulação de Platão acerca do conflito entre corpo e alma não poderia ser mais terreno, a saber: o conflito entre política e filosofia. Aqui, retornando ao início do texto de Arendt e deste breve comentário, o que nós temos é Platão usando as ideias para fins políticos, ou seja, introduzindo “padrões absolutos na esfera dos assuntos humanos”. Ninguém depois dele, segundo Arendt, ousaria expressar algo do tipo de uma forma tão radical.
E é justamente a alegoria da Caverna, que abre o Livro VII d’A República, que Platão usou para abordar a relação entre filosofia e política na polis e a maneira como o filósofo se relaciona com a cidade. Ali, presenciamos a tragédia inerente à condição do filósofo, aquele que, tendo superado o mundo sensível, ascende ao mundo inteligível e vislumbra as essências eternas. Ocorre que, por ser mortal, o filósofo não pertence àquele mundo e precisa fazer o caminho inverso, voltar à caverna; mas, porque viu o que viu, ele também não pertence mais ao mundo sensível, e, por mais que tente, não consegue comunicar aos que ficaram o que está além. E porque não consegue se comunicar e é desacreditado e ridicularizado pelos outros, mesmo ameaçado, o filósofo perdeu a capacidade de viver no mundo sensível, não consegue mais se orientar nele, compreendê-lo: trata-se da metáfora perfeita sobre o modo como a filosofia enxerga a política (e não o oposto). A partir disso, é preciso descobrir uma maneira de se (re-)situar no mundo sensível. A conclusão de Platão, a esse respeito, é que a saída para o filósofo seria assumir o governo da cidade, até para que não seja governado pelos ignorantes ou, no limite, acabe morto por eles.
Quando conclui que o melhor a fazer é assumir o controle da cidade, Platão não nos explica por que razão o filósofo não consegue persuadir seus concidadãos da existência de um outro mundo além do mundo sensível. Arendt recorre a dois outros textos platônicos para tentar responder a essa questão. Do Teeteto, ela pinça uma definição de Platão sobre a origem da filosofia: “pois do que o filósofo mais sofre é do espanto, pois não há outro início para a filosofia senão o espanto (…)”. E, da Sétima Carta, a constatação de que “é impossível falar sobre isso (filosofia) como se fala sobre as outras coisas que aprendemos, ou melhor, de tanto estar junto a isso… de um fogo tremeluzente, uma luz se acende”. Ou seja: é impossível para aquele que se espanta “diante daquilo que é como é” (p. 111) comunicar esse espanto a outrem ou sequer verbalizá-lo, traduzi-lo em palavras. Esse espanto (thaumadzein), ao qual Kierkegaard se refere “como a experiência da coisa-nenhuma, do nada”, e que é (reiteramos) o próprio início da filosofia, só poderia ser formulado não por meio de afirmações, mas, sim, mediante as chamadas perguntas últimas, sobre o sentido da vida, da morte etc. Logo, se o homem pode ser descrito como um ser que faz perguntas, a diferença entre o filósofo e os demais não residiria no fato de que os demais, a “multidão”, como diz Arendt, nada saberiam do espanto, mas, sim, e a exemplo dos moradores da caverna, recusariam terminantemente romper os grilhões e caminhar na direção do espanto, experimentá-lo, frequentá-lo, conhecê-lo.
E, se o espanto resulta em mudez, posto que é incomunicável, a filosofia coloca-se, outra vez, na contramão da política, onde o falar é imprescindível, e também porque se trata (a política) de uma atividade à qual não interessa o homem em sua singularidade. Além disso, o filósofo está à margem da multidão e, portanto, da política porque lhe é impossível comunicar o incomunicável (o espanto); sempre que ele procura se imiscuir no chamado “mundo do senso comum”, tudo o que consegue expressar vem “em termos de não-senso (non-sense)” (p. 113). Por outro lado, é inegável que o esforço de Platão de “introduzir padrões absolutos na esfera dos assuntos humanos” resultou em inúmeras tentativas de compreensão da vida política no decorrer dos séculos, até o esgotamento dessa tradição na Idade Moderna com os escritos de Maquiavel, Hobbes e, por fim, Marx. Hoje, segundo as palavras de Alexis de Tocqueville citadas por Arendt (pp. 114-5), “como o passado cessou de jogar sua luz sobre o futuro, o homem vaga na obscuridade”, num mundo em que, conforme a autora, “nem mesmo o senso comum faz mais qualquer sentido”. Logo, conclui Arendt, dado o colapso até mesmo do senso comum, é lícito observar que tanto a filosofia quanto a política tiveram, ironicamente e malgrado aquele conflito originário, o mesmíssimo fim. Assim, talvez mais do que nunca, faz-se imprescindível colocar em pauta a possibilidade de “uma nova filosofia política da qual pudesse surgir uma nova ciência da política”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
¹ ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Tradução de Helena Martins. São Paulo: Relume Dumará, 1993.
² ARENDT, Hannah. Em Compreender – Formação, Exílio e Totalitarismo. Ensaios (1930-1954). Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras / Editora UFMG, 2008.
Imagem: A morte de Sócrates (1787), de Jacques-Louis David.