Artigo publicado em 24.07.2023 no Estadão.
Na edição impressa, o artigo saiu em 26.07
(clique na imagem para ampliá-la; título e subtítulo são dos editores, não meus).
Em 1999, cinco anos após Roberto Baggio errar aquele pênalti, os EUA sediaram outra Copa do Mundo, dessa vez de futebol feminino. O palco da finalíssima foi o mesmo no qual a seleção brasileira sacramentara seu quarto título mundial: o tórrido Rose Bowl em Pasadena, Califórnia. E, a exemplo de Brasil e Itália, as finalistas de 1999 também empataram em 0x0 no tempo regulamentar e na prorrogação, e o título foi definido nos pênaltis. EUA e China se enfrentaram naquele 10 de julho, e um dos registros mais célebres do evento está no livro Vida de Escritor, de Gay Talese (Cia. das Letras, tradução de Donaldson M. Garschagen).
O autor alterna a narração da final com a descrição de uma partida da “Subway Series”, como são apelidados os confrontos entre os times novaiorquinos Yankees e Mets. É um prazer extra para o leitor brasileiro contrapor a tranquilidade com que Talese discorre sobre beisebol ao didatismo meio desajeitado na abordagem do “soccer”. Mas ele é tão sagaz que intui aquilo que o grande Bill Shankly disse certa vez: “Futebol não é uma questão de vida ou morte, é muito mais importante do que isso”.
Talese atenta para as questões políticas envolvidas (a tensão entre os países após o bombardeio acidental, por caças norte-americanos, da embaixada chinesa em Belgrado), os detalhes mais significativos (a única negra em campo era a goleira Briana Scurry, autoproclamada “mosca no leite”; Scurry se adiantou na cobrança que decidiria o jogo, infração ignorada pela arbitragem) e o símbolo da derrota chinesa: a meio-campista Liu Ying, que errou o pênalti. A final seria um gancho formidável para “mostrar muita coisa a respeito dessas duas sociedades”. E Talese embarcou para a China.
Lá, muita coisa mudara desde as manifestações de 1989. As autoridades enfrentavam com maior rapidez os membros da seita Falun Gong, para que o movimento não crescesse como os protestos de estudantes e trabalhadores que culminaram no Massacre da Praça da Paz Celestial. A abordagem de Talese do morticínio, incluindo as simplificações ocidentais, os relatos contraditórios e uma referência ao que ele próprio testemunhara em Selma, Alabama, em 7 de março de 1965 (quando manifestantes negros pró-Direitos Civis foram brutalmente agredidos pela polícia), é um dos pontos altos do livro.
Mas como encontrar Liu Ying? A Nike já possuía fábricas na China, e Talese conhecia o presidente da empresa, Phil Knight (sim, aquele sujeito interpretado por Ben Affleck no filme Air). Graças aos contatos do amigo, conseguiu a primeira entrevista com a jogadora. Depois, também falou com a mãe e a avó de Liu Ying, e acompanhou a seleção chinesa por meses.
O futebol é a janela pela qual observamos a história. As histórias dessas mulheres são atravessadas pelas enormes mudanças ocorridas no século XX, desde a queda do último imperador até o processo de transformação econômica alavancado por Deng Xiaoping, passando pelos horrores da Revolução Cultural. Tais mudanças são muito bem simbolizadas pelo que acontece com o lar da família de Liu Ying, uma das “residências baixas e seculares, com portais treliçados em arco, que se abriam para um beco antigo chamado hutong”. No processo de canibalização modernizadora, e em vista das Olimpíadas de 2008, que Beijing sediaria, “a casa com pátio em que Liu Ying nascera e fora criada” acaba demolida, “sua localização (…) perdida em montanhas de entulho”. A comunidade familiar que assistiu pela TV à final da Copa de 1999 se dispersa. O custo humano da “modernização” é incalculável.
Por fim, a busca de Talese não esconde certa ânsia por redenção. Ele gostaria que Liu Ying alcançasse um triunfo que obliterasse o pênalti perdido. Mas, como o próprio Baggio (ou o nosso Zico) poderia atestar, as coisas não funcionam assim, seja no futebol, seja na vida.