Texto publicado n’O Popular em 07.02.2023.
Foram trinta dias de hospedagem. Um mês. Imagino o clima na casa do lutador durante esse período. Imagino o hóspede circulando por ali. Sobrevivendo, ou quase. Exibindo as fraturas expostas. Lambendo as feridas purulentas. Reclamando dos cortes e escoriações. Comendo as próprias entranhas. Trinta dias. Alguns momentos de euforia obliterados por dias e noites intermináveis de medo e torpor. As dezenas de carpideiras lá fora, delirantemente firmes derrota após derrota após derrota. Um mês. Dez vezes setenta e duas horas. Presos naquela escatologia obscena. Na Segunda Vinda abortada de novo e de novo e de novo. Na promessa não cumprida do Retorno.
Trinta dias de hospedagem. Imagino as perorações, a choradeira, os acessos de raiva, as ideias tresloucadas, as piadas de mau gosto, as dores de barriga, a espuma nos cantos da boca, a mitomania, as dores de barriga, o bodum, a gritaria com o mundo, as dores de barriga, a esperança do Retorno, a histeria, as dores de barriga, os tiros pela culatra, as notícias do fracasso, a culpabilização dos comparsas, o medo da cadeia e, claro, as dores de barriga.
Imagino o hóspede no sofá, alta noite, rindo a bandeiras despregadas de um vídeo qualquer, um quadro de programa humorístico a que assiste no celular enquanto o resto da casa tenta, sem sucesso, dormir. Ele gargalha, ele se debate, ele vê e revê o mesmo vídeo até para se certificar de que entendeu mesmo a piada. Quanto mais óbvia, melhor. Quanto mais abjeta, melhor. Ninguém ri como ele. Não àquela hora, pelo menos. E, por certo, não daquelas coisas.
No inverno de seu descontentamento, o comportamento do hóspede é ainda mais errático do que o habitual. Ele é visto diante do espelho, apalpando as bochechas macilentas. Ele é visto no gramado, observando uma fileira de formigas. Ele é visto no quarto, sentado na beirada da cama enquanto a noite cai. Ele é visto a uma janela, mãozinhas para trás, os olhos vazios fitando o muro defronte. Ele é visto diante da geladeira aberta, às três da manhã, comendo os restos frios de uma pizza de pepperoni. Ele é visto lá fora, choramingando com as carpideiras e prometendo uma reação. Ele é visto devorando frango frito em uma lanchonete, cotovelos sobre a mesa, as mãos emporcalhadas de gordura e os lábios finos trabalhando em desacordo com os dentes.
À mesa do desjejum, certa manhã, o hóspede reclama das dores de barriga e afirma sentir saudades de passear de moto com o pessoal. Ninguém diz nada. Ele conta que teve um sonho no qual ascendia aos céus. Como?, alguém pergunta. Montado em uma motocicleta, claro. E sem usar capacete. Ele diz isso e gargalha. Alguém esbarra em uma xícara, que se espatifa no chão. Ainda rindo, o hóspede desvia os olhos para fora. Há nuvens no céu, enrugadas e dispersas. Ele tem a impressão de que o firmamento adquiriu uma coloração esquisita, adoentada, como se fosse muito velho e estivesse prestes a despencar. O sorriso desaparece do rosto do hóspede. Usando termos chulos, ele diz que precisa ir ao banheiro e, com movimentos bruscos, levanta-se da mesa e desaparece casa adentro. Olhando para a cadeira vazia, recém-abandonada, o lutador respira fundo. Está exausto.