Artigo publicado n’O Popular em 02.08.2022.
De todas as expressões sedimentadas em nosso desgraçamento antirrepublicano, “cidadão de bem” é uma das piores. Quando ainda possuía perfis nas redes sociais, eu procurava bloquear todo e qualquer novo seguidor que, em sua minibio, declarasse ser um “cidadão de bem”. Em geral, a expressão vem acompanhada de símbolos variados, como a bandeira nacional, imagens religiosas e arminhas. No inexorável processo de milicianização do Brasil, as ideias de “cidadão” e de “bem” foram as primeiras que corromperam.
Vivemos em uma espiral de corrupções. Tempos atrás, um “cidadão de bem” invadiu uma festa e matou o aniversariante por se sentir ofendido com a decoração ambiente, dedicada a Lula e ao PT. Pessoalmente, acho ridícula e não raro doentia qualquer tipo de adoração a figuras políticas. Mas ninguém merece ser abatido a tiros por ser ridículo.
Animada por anos de discursos extremistas, mentiras, apologias da violência e legislação irresponsável, uma parcela da população anda armada por aí, pronta para matar, morrer e/ou ceder — inadvertidamente ou não — as armas para o crime organizado. No entanto, a maior parte dos brasileiros quer distância de pistolas e pistoleiros. Somos 69%, segundo pesquisa recente do Datafolha.
A conflagração está na ordem do dia. Em vez de uma corrida eleitoral, teremos uma confrontação marcada por atos violentos, ameaças e tentativas de golpe, tudo embalado por um messianismo constrangedor. É verdade que, à esquerda, os lulistas têm a sua cota de fanatismo, mas quaisquer equiparações com a insanidade bolsonarista seriam impróprias ou mesmo absurdas. Nos governos do PT, a corrupção era material e sustentada por quase todo o sistema político. No governo Bolsonaro, além de material e sustentada por quase todo o sistema político, a corrupção também é anímica. Eis um outro nível (subterrâneo) de perversão nacional, mais generalizado e profundo.
Em 2006, a pior “violência” que sofri por declarar meu voto em Alckmin foi ser chamado de “fascista” por esquerdistas partidários do que o jornalista Jerônimo Teixeira definiu como “stalinismo odara”. Em 2022, declarar que nunca votei e jamais votaria em Bolsonaro pode me render um tiro na cara.
Para concluir, penso em Atenas. Sócrates circulava por lá com a intenção de ser a “parteira” da verdade inerente à opinião (fundamentada) de cada um, o que, para ele, seria imprescindível para a reconstituição de uma comunidade. Tal postura era uma forma de distanciar os cidadãos da animosidade que grassava entre eles, uma das razões pelas quais a cidade decaíra tanto desde a morte de Péricles. Recorrendo a Aristóteles, temos um espírito de comunidade desde que os cidadãos, por mais diferentes que sejam entre si, consigam se igualar politicamente por meio da amizade. É o oposto de matar todos que pareçam dissonantes, com vistas a promover uma “uniformidade” impossível. O que acontece entre amigos é que um procura compreender a verdade do outro, isto é, enxergar o mundo pelos olhos alheios. Tal esforço compreensivo não tinha lugar naquela Atenas decadente (não por acaso, Sócrates foi condenado à morte), e por certo não tem lugar nesse Brasil arruinado. Péricles morreu há muito tempo.