[Texto originalmente publicado na revista Vida Simples,
em meados de 2010.]
A última tela de Manabu Mabe continua em seu ateliê, confortavelmente recostada em um cavalete. Ela traz uma das imagens-assinatura do pintor, uma figura algo disforme, meio arredondada. O fundo preto ao mesmo tempo realça e oprime as cores vivas (vermelho, amarelo, azul) da figura em primeiro plano, como se ela estivesse sendo abraçada ou engolfada pela escuridão. Nesse sentido, a tela talvez possa ser observada como uma metáfora sobre o fim: Mabe faleceu em 1997, antes de terminá-la.
Muito embora seja um dos pintores abstratos mais importantes e premiados do século XX, o interesse pela sua obra, ao invés de aumentar, arrefeceu desde a sua morte. Isso se deveu a uma série de fatores, como, por exemplo, uma gestão política sofrível, que não prima pela preservação e divulgação dos nossos bens culturais e artísticos, e também ao fato de o mercado estar repleto de compradores emergentes que, sem o devido conhecimento de arte, negociam obras irrefletidamente. Com a desvalorização, houve também um crescente desinteresse midiático pelo pintor. Felizmente, graças a diversas iniciativas perpetradas pelo Instituto Manabu Mabe, isso começou a mudar e ele, aos poucos, reassume o lugar que lhe é devido.
Dentre essas iniciativas, está a inauguração de um museu nipo-brasileiro de artes visuais que funcionará no prédio do antigo Colégio Campos Salles, na Liberdade, tradicional bairro paulistano de imigrantes orientais, e um espetáculo de butô-MA inspirado nas telas de Mabe e coreografado pelo respeitadíssimo Tadashi Endo. O museu era um sonho antigo do próprio Mabe, e a ideia original era instalá-lo em sua própria residência. Para tanto, ele começou, inclusive, a comprar de volta algumas de suas obras; Mabe viajava muito e produziu uma quantidade considerável de telas que foi deixando pelo mundo. Hoje, uma das atribuições do Instituto (em parceria com o Espaço Arte e Cultura), capitaneado por Joh e Yugo Mabe e Ely Sayemi Iutaka, respectivamente filhos e sobrinha do pintor, é localizar e registrar essas obras. Quando possível, catalogá-las e consegui-las de volta a fim de expor no futuro museu.
MABISMO
Mabe veio para o Brasil aos dez anos, em 1934, a bordo do navio La Plata Maru. Com ele, vieram os pais, os irmãos e os crayons que usava para desenhar na escola primária no Japão. A família veio, a exemplo de tantos outros imigrantes japoneses, para trabalhar nos cafezais do interior paulista (não por acaso, a autobiografia de Mabe, lançada em 1994 e esgotada há anos, intitula-se “Chove no Cafezal”). Estabeleceram-se primeiro na região de Birigui, no noroeste do estado, depois em Guararapes e posteriormente em Lins, a oeste. Sempre que o trabalho na lavoura permitia, Mabe desenhava. Em 1945, comprou um tubo de tinta a óleo e começou a pintar com esse material. Pintava paisagens e naturezas mortas em papelões e tábuas de madeira, dissolvendo a tinta em querosene. Também fazia cópias de pinturas de Antonio Parreiras (1860-1937) publicadas em calendários. Ele conta em sua autobiografia: “Como o cafezal exigia meu trabalho até aos sábados, e como meus amigos contavam comigo, constantemente, para jogar beisebol, a pintura ficava reservada aos domingos, feriados e dias de chuva”.
Seu primeiro professor foi um fotógrafo de Lins que estudara pintura, Teisuke Kumazaka. Com ele, Mabe aprendeu a preparar a tela, a dissolver a tinta com terebentina e óleo de linhaça e, sobretudo, a fazer croquis. Em 1947, durante uma passagem por São Paulo, visitou Tomoo Handa (1906-1996), pintor e jornalista bastante respeitado na época, mostrou a ele algumas pinturas e recebeu conselhos valiosos, como: “Não pinte conceitualmente. Observe melhor”. Dois anos depois, perderia o pai, vitimado por um câncer no estômago. Mesmo no hospital, Mabe aproveitava para praticar, desenhando seus croquis.
Por essa época, foi convidado a frequentar o Grupo Quinze, criado por artistas como Handa, Yoshiya Takaoka (1909-1978), Yuji Tamaki (1916-1979) e Tadashi Kaminagai (1899-1982), entre outros. O próprio Mabe narra, em sua autobiografia, como foi a primeira reunião com o grupo, um estudo de nu: “A modelo era uma brasileira de 23 anos. Pela primeira vez, vi uma mulher nua. Os melhores ângulos, entretanto, estavam todos ocupados pelos que chegaram primeiro. O único lugar disponível era aos pés da moça deitada, sob um ângulo muito delicado da modelo, vista por baixo. Era totalmente impossível produzir uma pintura naquelas condições”.
família no mesmo ano em que ele, 1934. Tiveram três filhos: Joh, Yugo, que hoje também pinta, e Ken, arquiteto. Com o passar do tempo, a pintura se tornara a atividade mais importante para Mabe, em vez de ser apenas um hobby, conforme lhe sugerira o pai. Assim, em 1957, disposto a arriscar, ele vendeu o cafezal e se mudou com a mulher e os filhos para São Paulo. Passaram por muitas dificuldades a princípio, com o artista fazendo molduras, tingindo gravatas e até mesmo pintando placas para sobreviver. Sua persistência, contudo, foi recompensada.
A revista Time, em um artigo dedicado a ele e publicado na edição de 02 de novembro de 1959, chamaria aquele de “o ano de Manabu Mabe”: foi considerado o melhor pintor nacional na V Bienal de São Paulo, quando recebeu o certificado das mãos de Juscelino Kubitschek, e, pouco depois, premiado na I Bienal Jovem de Paris. No decorrer dos anos e décadas seguintes, continuaria expondo em museus, bienais e galerias de todo o mundo, incluindo em seu país natal.
Artisticamente, a evolução de sua técnica levou inclusive à criação de uma categoria, o “mabismo”. Inadvertidamente, a melhor descrição desse estilo, que nunca deixou de sofrer mudanças, isto é, de evoluir, foi feita pelo próprio artista em sua autobiografia, referindo-se a um outro gênio: “Mas, depois que passei ao abstrato, sinto-me atraído pelo estilo de vida de Picasso, que pintasse o que quisesse, seria sempre Picasso. Sente-se o seu cheiro, na sua pintura”. De fato, sobretudo a partir dos anos de 1950, quando completou sua “fase de estudo” e experimentou o expressionismo abstrato, o impressionismo e o fauvismo para, mais tarde, abraçar um abstracionismo de cores cada vez mais vibrantes, é impossível olhar para uma tela de Mabe sem se sentir jogado em uma espiral sinestésica, em que cheiros e sons particularíssimos vêm à mente do observador. O estilo seria, ainda, fruto de uma junção oriente-ocidente: seus traços e formas denotam uma sensibilidade japonesa, ao passo que as cores fortes, vivas, dizem respeito à brasilidade desenvolvida desde que aportou em Santos.
MA BE MA
O espetáculo inspirado nas telas de Mabe intitula-se Ma be Ma e foi coreografado por Tasashi Endo, um dos maiores dançarinos e coreógrafos de butô em todo o mundo. Endo foi discípulo de Kazuo Ohno e, a exemplo de Mabe, criou um estilo próprio e inconfundível no âmbito de sua arte, chamado de butô-MA. No entanto, não é “apenas” isso que aproxima os dois artistas: a exemplo de Mabe, Endo também se mudou cedo para um outro país (no caso, a Alemanha, onde vive há quarenta anos) e ali desenvolveu o seu trabalho. Tanto quanto o pintor, o coreógrafo compreende perfeitamente o que é estar entre dois lugares, duas culturas, e criar artisticamente a partir desse estado de suspensão. Na verdade, é justamente esse o conceito do butô-MA: colocar-se no espaço que há entre as coisas.
Ma be Ma estreou em São Paulo em agosto, no SESC Ipiranga, onde teve três apresentações. Outras estariam previstas para meados de setembro. O Museu Manabu Mabe, por sua vez, está praticamente pronto e logo será inaugurado. Será um espaço para que se conheça e aprecie não só a obra de Mabe, mas também as de outros artistas nipo-brasileiros. Levando-se em conta a grandeza de Manabu Mabe, estava mais do que na hora de sua arte voltar à ordem do dia.
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