Publiquei o texto abaixo (uma versão bem menor dele, na verdade) no jornal O Popular em 09.11.2020, por ocasião do aniversário de 60 anos de Diego Armando Maradona. Ele morreu hoje em Tigre, Argentina, vitimado por uma parada cardiorrespiratória.
Em 24 de junho de 1990, eu tinha dez anos de idade e bem pouca noção da vida, mas sabia de uma coisa: Diego Armando Maradona era o melhor jogador de futebol em atividade, e certamente um dos melhores de todos os tempos. Assistindo ao Show do Esporte todos os domingos e acompanhando os jogos do então melhor campeonato do mundo, o italiano, confirmava essa impressão semana após semana, rodada após rodada, com as atuações do baixinho pelo Napoli. Eu demorei a encontrar o meu time do coração (ou a ser encontrado por ele, pois a verdade é que esse tipo de coisa não se escolhe), e só fui encontrá-lo fora do Brasil, mas o primeiro ídolo, aquele indivíduo capaz de iluminar as minhas retinas com lances que me pareciam impossíveis, esse eu encontrei bem cedo, como se vê.
Antes disso, em 1986, quando Maradona pintou o gol mais bonito de todas as Copas do Mundo, aquela obra-prima de selvageria e resiliência, o lance em que destroça meio time inglês quatro anos após a Guerra das Malvinas, eu era muito novo para atentar para a grandiosidade daquele feito. Para ser franco, nem me lembro de ter assistido à partida. Brasileiros ressentidos e desinteligentes costumam se lembrar daquele jogo por causa do gol de mão. Brasileiros amantes do futebol preferem se lembrar da absoluta genialidade com que Maradona refundou o próprio país, que se recuperava de uma ditadura e da estupidez de uma guerra absurda, aos 55 minutos de um jogo de futebol.
Como disse, eu não me lembro se assisti àquele gol ao vivo. É bem provável que não. Mas a memória afetiva, pelo simples fato de eu então estar vivo e palmilhar pelo mesmo planeta em que Maradona corria, a memória afetiva teima em dizer que sim. Sendo um romancista, sempre opto pelo que ela me diz. Então, quando alguém me pergunta, ou mesmo quando ninguém me pergunta, costumo dizer que vi o gol mais bonito da história das Copas ao vivo, com o coração na boca e a alma preenchida por um rasgo de beleza extrema, o momento em que um homem sozinho, empurrado pela história do próprio país, pelos mortos, pelos fantasmas, pelos que partiram e pelos que restaram, pelo sofrimento e pela expectativa da alegria mais pura, correu com a bola dominada rumo ao gol não “apenas” para se vingar, mas para desvelar algo ulterior e exprimível apenas daquela forma e naquelas circunstâncias. Não se vê um gol daqueles — testemunha-se.
Em 1990, foi diferente. Quero dizer, diferente porque eu me lembro de tudo. Eu me lembro de meu pai indignado com os gols perdidos por Careca, o cruzamento bizarro de Müller a certa altura, o cabeceio de Dunga (na trave, assim como duas outras bolas no começo do segundo tempo), e por aí afora. E, acima de tudo, eu me lembro de Maradona chamar o jogo para si, ou melhor, eu me lembro do jogo, sabendo o que é — e por quem é feito — deixar-se, permitir-se jogar por Maradona: ele domina a bola no meio-campo, dá um corte seco em Alemão, escapa do carrinho de Dunga e, em seguida, atrai toda a defesa brasileira, deixando Caniggia livre para receber e arrematar.
Digo o seguinte: naquele momento, o momento em que a Argentina ejetou o Brasil de uma Copa do Mundo, eu sorri. Não porque eu torcesse “contra o Brasil” (isso veio depois, quando tomei consciência do que é a CBF, do que ela representa e de como depaupera e desgraça o futebol brasileiro), mas porque era Maradona, porque era futebol, porque era belo. Diante de um lance daqueles, todo o resto se apequena de forma incontornável. A beleza ignora tudo isso. A beleza diz respeito ao que é essencial, mas nunca, jamais, fácil: o gesto ou a sequência de gestos irrefreáveis, as opções imprevistas, os toques contraintuitivos, a criação do espaço, a desfibrilação do tempo, o paroxismo da anábase.
Em um célebre poema dedicado a Ademir da Guia, João Cabral de Melo Neto descreve como esse ídolo “impõe com seu jogo / o ritmo do chumbo (e o peso), / da lesma, da câmara lenta, / do homem dentro do pesadelo”. Maradona também “apodrecia” seus adversários (como João Cabral diz a respeito de Ademir no mesmo poema), mas de outra forma, com outra espécie de imposição, com outro jogo, que nada tinha de lento. Não, muito pelo contrário. Maradona era alígero. Seu ritmo não se infiltrava no adversário, não o entorpecia, não o atava, pois não havia tempo (nem necessidade) para isso. Seu ritmo aleijava, degringolava, deixava pelo caminho, os pés velozes e o impulso do corpo, corpo diminuto, abrindo clareira após clareira para melhor deslizar. Era um fenômeno peckinpahniano, acelerando e desacelerando conforme lhe aprouvesse, fragmentando um mesmo drible em dribles menores, adiantando um gesto só para resgatá-lo mais à frente, resgatá-lo e adensá-lo, encenando e reencenando o pesadelo para melhor fixá-lo na alma desenganada do adversário.
Não há poema que dê conta de Maradona. A atmosfera que ele enseja é rarefeita demais, parece nos lançar em um mundo repleto de inversões e impossibilidades. Em alguns momentos, a beleza é tamanha que me sinto estrangulado. Não é que me faltem palavras. Não, o que me falta é fôlego, o que me falta é oxigênio. Mas restam os olhos para ver, felizmente. Neles eu me fio.
Pelé, dizem, foi o melhor. Isso é bem possível. Mas, por inúmeras razões que transcendem o campo e se confundem com o que há de belo e hórrido no jogo e na vida, Maradona foi inegavelmente o maior.
Que descanse em paz.