Artigo publicado hoje n’O Popular.
É difícil explicar para pessoas intelectualmente limitadas o conceito de ironia. Quando a limitação intelectual se alia aos preconceitos mais rasteiros, qualquer tentativa de explicação se torna inútil. Você fala com a pessoa, usa algum exemplo para ilustrar a coisa — Jair Bolsonaro chamando o coronavírus de “fantasia” justo quando a doença rebolava bem perto dele —, mas há uma desconfiança, uma confusão no olhar estupidificado do outro. Você insiste. Sim, é inútil, mas também divertido. Extremamente divertido.
Bolsonaro é alguém afeito aos fundamentalismos e contrário à transparência e ao avanço científico. Logo, não é irônico que justo o secretário de comunicação (!) Fabio Wajngarten seja o primeiro (e, até o momento em que escrevo, único) infectado com o coronavírus no núcleo duro (ou meia-bomba) da Presidência da República? Isso depois de uma viagem aos EUA, onde a patota se encontrou com Donald Trump. Apertos de mãos, perdigotos, os brasileiros babando em cima do norte-americano. Também será irônico se o secretário tiver infectado o presidente dos EUA. Como alguém tuitou, estaríamos diante do primeiro caso de contaminação de uma pessoa por um bichinho de estimação.
Escrevo na sexta-feira. É provável que, quando este texto for publicado, eu também esteja doente — o que seria outra ironia. Talvez eu esteja estirado na cama, lendo o Salmo 109 com um sorriso trouxa na cara. Sim, aprecio as ironias a esse ponto. “Muito mais fantasia, a questão do coronavírus.” Boa, Jair.
Que a pesquisa científica brasileira se encontre tão comprometida pela horda de oligofrênicos que chegou ao poder graças aos votos de milhões, bom, disso eu não consigo rir. Nenhuma ironia aqui. Mas é o que se obtém após séculos de investimento em deseducação. Para essa turba, ciência é “muito mais fantasia”, e a política de devastação estrutural (e aqui incluo as ações destruidoras em cultura, educação, meio ambiente, enfim, em todas as áreas) exercida pelo governo é uma ótima ideia.
Voltando ao meu provável adoecimento, já separei os livros que lerei enquanto estiver acamado. Decamerão, de Boccaccio, será o primeiro. Escrito em meados do século XIV, é sobre um grupo de sete moças e três rapazes que se refugiam em uma vila isolada, durante a epidemia da peste negra. Como não têm muito o que fazer, eles começam a contar histórias uns para os outros. O livro é composto por essas narrativas.
Depois será a vez de A Peste, de Albert Camus. Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, também é uma boa pedida. Dentes Negros? Não costumo reler meus próprios livros, mas fica aí a sugestão para vocês. É sobre uma epidemia que dizima boa parte da população brasileira. Animador, hein?
“Sim, a peste, como abstração, era monótona”, escreve Camus. Talvez isso explique a fala obtusa do presidente brasileiro. Ele estava entediado com toda essa conversa de coronavírus e aproveitou para fustigar um de seus alvos prediletos — a imprensa. Enquanto isso, a pandemia avança. Boa, Jair. Mas eu é que não vou explicar o que é ironia para Bolsonaro. Vou ficar bem quietinho no meu canto, lendo Boccaccio e esperando a doença passar ou a morte chegar, o que vier primeiro.