Artigo publicado hoje n’O Popular.
Segundo a crítica literária Michiko Kakutani, a noção pós-modernista de que não existem verdades absolutas, abraçada pela esquerda em meados do século passado, foi também, e ironicamente, adotada pela extrema direita contemporânea. A noção é autoanuladora: se não existem verdades absolutas, como asseverá-lo? Noutras palavras, a asserção “não existem verdades absolutas” arroga-se, paradoxalmente, o status de uma verdade absoluta: logo, caso seja verdadeira, é falsa; e caso seja falsa, é verdadeira. Em seu livro A Morte da Verdade – Notas Sobre a Mentira na Era Trump (ed. Intrínseca, trad.: André Czarnobai e Marcela Duarte), Kakutani procura discorrer sobre como o relativismo cego e inconsequente teria resultado nesse estado de fragmentação epistemológica e ética que vivenciamos nos dias de hoje.
Traçando um panorama ligeiro e, por conseguinte, simplificador do pós-modernismo – especialmente quando enfia os nomes de Nietzsche e Heidegger de maneira leviana, aludindo-os como credores de Foucault e Derrida sem, contudo, contextualizar e fundamentar tal afirmação –, Kakutani tenta descrever o fenômeno Trump como sintomático do relativismo supracitado, do ambiente histérico que resultou das chamadas guerras culturais e, sobretudo, dos usos e abusos da internet em geral e das redes sociais em particular.
Segundo ela, as fraturas epistêmicas, aprofundadas pela erosão do chão comum que deveria nos sustentar, apontam para o esgarçamento das estruturas políticas e democráticas e para o recrudescimento de um novo tipo de autoritarismo, beneficiário da esquizofrenia disseminadora de fake news e afins. Em um mundo no qual nada é objetivamente verdadeiro, mas fruto de diversas “narrativas”, qualquer coisa pode ser tomada ou aceita como “fato”, a depender do gosto do freguês — incluindo as notícias, ou mentiras, mais absurdas.
O problema é que Kakutani está, ela própria, desenrolando uma narrativa, e parece incompreender que os termos dos quais se utiliza foram também mergulhados naquele oceano de ensurdecedora esquizofrenia. Assim como Heidegger, em Sobre o “Humanismo”, critica em Sartre o uso do mesmo vocabulário que o francês intenta criticar, de tal modo que o existencialista acaba ridiculamente enredado pela própria armadilha, percebo em Kakutani uma crítica do perspectivismo que, no entanto, não consegue escapar dos vícios perspectivistas.
Talvez esse problema seja fruto da crença da autora não em um sistema político – a democracia ocidental –, mas na ideia de um sistema político – a Democracia Ocidental – que nunca se instalou por completo e irredutivelmente na realidade, nem mesmo nos EUA de Don Draper. É óbvio que o ideal alimenta o concreto, e é certo que alguns dos nossos melhores momentos são ou foram resultantes de uma maior aproximação daquele ideal, mas o choro por um Éden imaginário não torna esse paraíso menos perdido, e perdido de antemão.
Assim, A Morte da Verdade serve mais como um testemunho dos nossos dias do que como uma discussão aprofundada acerca dos mesmos — é um sintoma, não um diagnóstico. Mas, justiça seja feita, um sintoma arejador, amparado em uma teia febril de relações e competente na maneira como, em suas passagens mais felizes, enquadra picaretas como Derrida e Paul de Man. Ou seja, é o tipo de sintoma que chama a atenção para a doença, possibilitando um tratamento mais adequado da mesma.