At first I thought you and the others were gods,
but then I realized you’re just men.
Maeve.
Fiquei muito impressionado com o episódio exibido ontem de Westworld. Depois de assisti-lo, veio à minha cabeça um texto publicado na Folha tempos atrás, segundo o qual um possível “problema” da série residiria no fato de que os espectadores não teriam “empatia” por um monte de robôs.
A burrice, ela sempre me impressiona.
Sejamos didáticos: mais do que em relação à natureza da realidade (e de como a percebemos), Westworld explicita zonas perturbadoras de indistinção no que concerne à própria natureza do humano, não só enquanto suposta “realidade objetiva” (apaguem a luz), mas sobretudo enquanto conceito.
Claro, são todas questões epistemológicas, tratam dos modos como percebemos (ou da possibilidade ou não de perceber) uma e outra coisa, mas a percepção do humano em si e por si se dá por meio de adições (animal + razão) e contraposições, como, aliás, Aristóteles ilustra no De Anima (e, dentre tantos outros, Heidegger investiga e questiona brilhantemente em textos como Ciência e pensamento do sentido). Agora, a partir do momento em que um ser artificial como os anfitriões de Westworld, o HAL de 2001 ou os replicantes de Blade Runner questionam a natureza da realidade em que estão inseridos e lançam mão do livre-arbítrio (mesmo que este não passe de mais uma linha de código em sua programação) (mas quem disse que esse também não é o nosso caso?), a zona de indistinção entre eles e os seres de carne e osso cresce ao ponto de colocar em questão a própria noção de humano na qual nos fiamos pelo menos desde que o supracitado estagirita tentou hierarquizar os viventes.
Claro que, conforme demonstra (por exemplo) Agamben em O Aberto – O Homem e o Animal, a concepção aristotélica foi mastigada, digerida, regurgitada e de novo mastigada etc. no decorrer do tempo. No entanto, a inquietação que a produziu permanece dependurada à nossa frente — ainda que, para muitos, ela seja como a porta que o personagem Bernard não enxerga a certa do altura do episódio de ontem de Westworld — e seus desdobramentos ainda se fazem mais do que presentes. Como todo problema filosófico, trata-se de um campo minado do qual não é possível desviar.
Sempre que se procurou definir o que é o humano, e a legislar a partir dessa ou daquela definição, mostra-nos Agamben, a tal zona de indistinção se inscreve e nós nos vemos obrigados a lidar com um mecanismo diabólico que envolve inúmeras gradações, subdivisões, poréns, interesses e coisas do tipo. Vide o modo como alguns grupos étnicos e/ou religiosos são eventualmente tidos como “menos humanos” que os demais, e assim tornados “matáveis” em determinadas circunstâncias — indígenas, hereros, namas, armênios, judeus, bósnios etc.
A burrice (ou a perversidade) reside justamente na presunção de que há uma definição clara e inequívoca do que seja (ou não) humano, quando a História (esta maravilhosa criação humana) aponta para a direção contrária, de que tal conceito é tão mutante e fugidio quanto problemático. Óbvio que os anfitriões de Westworld são máquinas, mas o grande barato da série é justamente o de brincar com a percepção (falha, irrefletida, presunçosa) que temos de nós mesmos, de nossa condição, e daqueles que consideramos ou não “semelhantes”.
Ainda no que diz respeito à série, convém ressaltar que alguns orgas e mecas parecem ser iguais ao menos em um aspecto importantíssimo: a teleologia. Os diálogos entre William e Dolores deixaram isso muito claro. E o tal labirinto talvez leve a uma compreensão (precária, momentânea, mas valiosa) dessa afinidade teleológica. Tentarei voltar a esse aspecto em um texto futuro, após o final da temporada, quando, presumo, algumas questões serão respondidas e outras serão suscitadas.
Seja como for, é sempre melhor partir de um estado de suspensão epistemológica, ou pelo menos de desconfiança. A ânsia por definições fáceis quase sempre resulta em impropriedades linguageiras e, a partir daí, em coisas muito piores. A violência é também um índice do nosso fracasso com ou frente à linguagem. Dar alguns passos para trás e repensar ideias e conceitos que em geral temos como prontos ou mesmo autoevidentes é uma estratégia tão velha (oi, Sócrates) quanto boa. Em se tratando de Westworld, o convite me parece irresistível: colocar-se por um tempo sub specie machinae. Na medida em que mal conseguimos enxergar o outro com os nossos olhos humanos, talvez as máquinas possam nos mostrar uma coisinha ou duas sobre a natureza indefinível que, de um jeito ou de outro, compartilhamos.
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BIBLIO A melhor tradução do livro de Agamben é ESTA (corram da edição brasileira, onde até o nome do autor é grafado erroneamente na folha de rosto). Em se tratando de Aristóteles, a edição da 34 é estupenda. E, na falta de outro melhor, o texto do Heidegger pode ser lido no volume Ensaios e Conferências, lançado pela Vozes e encontrável em sebos.