A verdade é que, de uns tempos para cá, eu mais revejo do que vejo filmes. Assim, tem muita coisa boa que estreou nos últimos anos e que só tardiamente vou assuntando. Sem problemas. O que é bom tende a ficar, e hoje em dia o acesso a quaisquer cinematografias fica a dois ou três cliques de distância.
Ontem, por exemplo, vi o multipremiado Leviatã, de Andrey Zvyagintsev. Este excelente filme russo teve o efeito de tornar Aquarius ainda menor às minhas retinas. É sobre uma expropriação criminosa, para a qual convergem o poder secular (representado por um prefeito e outros criminosos) e o poder religioso (que faz vistas grossas às práticas do político, por um lado, e é incapaz de oferecer consolo àquele que ferram, por outro). Ou seja, o filme explora com propriedade alguns dos piores aspectos da sociedade russa, tão similar à brasileira no que tange à corrupção e à violência. E não para por aí.
Zvyagintsev cria um potente drama familiar a partir da relação entre o protagonista, um mecânico, seu filho e a esposa (madrasta do menino), tumultuada pela presença de um quarto personagem. Este é um velho companheiro que atua como advogado na disputa relativa à expropriação. Eles estão apanhando no processo, quando surge a ideia de chantagear o prefeito.
No melhor espírito russo de (auto)aniquilamento, cada passo os leva um pouco mais perto do penhasco, e lá embaixo só há o mar Barents e as pedras castigadas por suas ondas. Recorrendo a Jó (40, 25): “Poderás pescar o Leviatã com anzol e atar-lhe a língua com uma corda?”. Não mesmo, queridos.
Vendo Leviatã, foi impossível não pensar em Aquarius. No lugar da explicitação estereotipada do conflito, tão porcamente desenvolvido no longa brasileiro, Zvyagintsev nos apresenta circunstâncias que nada têm de óbvias. O mecânico é sacaneado pelas autoridades, é claro, mas há uma teia de conflitos, interesses e anseios tão grande, envolvendo esposa, filho e amigos, que a narrativa se torna escorregadia. A crescente complexidade de cada situação e cada personagem contribui para que o filme adquira esse caráter elusivo.
Assim, o roteiro escapa do didatismo que corrói Aquarius por dentro, feito cupins. Leviatã é elíptico, permite que os personagens circulem e nós com eles, quando nos é dado conhecê-los um pouco e aos poucos. As lacunas e a forma como elas são eventualmente preenchidas (ou não) alimentam a referida complexidade do todo, evitam a identificação fácil com este ou aquele indivíduo e, acima de tudo, tornam ainda mais inclemente o clímax, que nada tem daquela patacoada pretensamente catártica e ideologicamente ingênua, “engajada” e risível do filme de Kleber Mendonça Filho.
E a questão, aqui, nem é propriamente política (embora passe por aí), mas, antes, de construção fílmica mesmo. É impossível que não haja contaminação ideológica, à direita, à esquerda, ambidestra ou por omissão, uma vez que (conforme Godard) o próprio ato de filmar é, em si, político. Fica a cargo do realizador trabalhar tal contaminação com inteligência, colocando-a a serviço do filme, se for o caso, e não o filme a serviço dela.
Leviatã nos diz muito da Rússia, mas, sobretudo, fala de e para nós a um nível essencial e brutalmente humano. Aquarius também nos diz muito do Brasil, mas o faz meio que sem querer, na medida em que, a exemplo do país, é um projeto malogrado pela preguiça e pela burrice.