Leio numa matéria d’O Globo: “Não é possível entender a mente de Hitler sem ler seus textos. Não é possível combater completamente e honestamente suas ideias sem combatê-las na fonte”. A fala é do publisher da Geração Editorial, Luiz Fernando Emediato, que está prestes a colocar no mercado uma nova edição de Minha Luta, de Adolf Hitler. Noutra matéria, publicada no Estadão, o mesmo Emediato afirma que se trata de uma “edição ‘antídoto’ de um clássico como outro qualquer”. Aqui já temos um problema.
Indo direto ao ponto: Minha Luta não é “um clássico como outro qualquer”. Não é sequer um clássico, e talvez Emediato devesse ler Calvino ou, caso esteja muito ocupado divulgando o livro de Hitler, recorrer a um bom dicionário antes de usar a palavra.
No Estadão, Emediato também responde ao escritor Ricardo Lísias, que se posicionou contra o lançamento de edições comerciais do livro, dizendo que ele teria começado “a fazer uma ridícula campanha contra a divulgação deste domingo no lançamento da Geração, e infelizmente agindo como o próprio Hitler (sic) – mentindo e distorcendo informações sobre a primorosa edição da Geração Editorial”. A ocorrência da Lei de Godwin não me parece inteligente, sobretudo neste caso. O texto de Lísias é claro, ponderado e bem fundamentado — assim como o de Miguel Sanches Neto, favorável à publicação, mas com ressalvas). Ademais, se Lísias agisse mesmo “como o próprio Hitler”, Emediato estaria em apuros. Quase todos nós estaríamos.
Voltando às primeiras aspas do publisher, de que não seria “possível entender a mente de Hitler sem ler seus textos”, bem, aqui temos outro problema. Tome-se a descrição que o historiador Ian Kershaw faz de Minha Luta em sua primorosa biografia Hitler (pág. 181):
Num resumo conciso, o livro se reduzia a uma visão simplista e maniqueísta da história como uma luta racial na qual a entidade mais elevada, a ariana, estava sendo solapada e destruída pela mais baixa, a parasítica judia. Em suas palavras: ‘A questão racial dá a chave não somente para a história mundial, mas também para toda a cultura humana’. A culminação desse processo havia se dado com o domínio brutal exercido pelos judeus através do bolchevismo na Rússia (…). A ‘missão’ do movimento nazista era, portanto, clara: destruir o bolchevismo judeu. Ao mesmo tempo — num salto de lógica que avançava convenientemente para uma justificativa da conquista imperialista direta — isso propiciaria ao povo alemão o ‘espaço vital’ necessário para que a ‘raça superior’ se sustentasse.
Não há mais do que isso em Minha Luta. O resumo de Kershaw é preciso e completo. E, dada a enorme quantidade de excelentes estudos sobre Hitler e o nacional-socialismo disponíveis, é realmente imprescindível para alguém que não seja um especialista ter contato com as “ideias” de Hitler “na fonte” para melhor “combatê-las”? E, sendo um livro tão estúpido quanto perigoso, mesmo uma edição crítica, comentada etc. não correria o risco de insuflar nos imbecis justamente o mal que pretende “combater”? E, vou me repetir agora, sendo um livro tão estúpido quanto perigoso, não é problemático que uma editora queira capitalizar com essa monstruosidade, mesmo que a partir de uma edição crítica, comentada etc.? E ficou evidente que a Geração Editorial quer, sim, capitalizar, e muito, conforme demonstrou sua primeira — e cretiníssima — ação publicitária, descrita na matéria do Estadão.
É claro que a opção da Centauro, de lançar uma edição “nua”, sem comentários, prefácios, contextualizações, nada, é ainda pior, de uma venalidade (em todas as acepções do termo) grotesca. Mas o posicionamento da Geração, explicitado pelas intervenções infelizes de seu publisher, transpiram a mesma venalidade, a mesma estupidez: “Ansioso para adquirir Minha Luta, de Adolf Hitler?”, perguntavam num e-mail promocional, enviado há alguns dias. A forma como você responde a essa pergunta diz muito a seu respeito, acredito. E afirma o editor Willian Novaes que “centenas de pessoas telefonam diariamente para a editora perguntando ansiosamente se e quando o livro vai sair”. Que espécie de argumento é esse? Voltarei a ele, mas aposto que, se colocarem nas prateleiras um Minha Luta para Colorir, milhares ligarão.
No estupendo Hitler e os alemães, o filósofo alemão Eric Voegelin recorre a Robert Musil para nos lembrar (pág. 133) de que toda estupidez “é sempre relacionada com a normalidade de um comportamento social determinado”, um comportamento “que não desempenha algo para o qual todas as condições, exceto as individuais, estão presentes”. Musil, segundo Voegelin, distingue diversos tipos de estupidez, e chega a um tipo “elevado, inteligente”, que se atreveria “a realizações a que não tem direito” (pág. 137). E ele prossegue sumariando Musil: “Então, aqui vem o elemento de atrevimento, de hybris, de arrogância espiritual. A estupidez elevada ou inteligente é um distúrbio no equilíbrio do espírito”, uma espécie de “revolta contra o espírito, que dá ensejo a dizer ou fazer coisas contra o espírito”.
Essa estupidez elevada é a verdadeira doença da cultura (mas para evitar mal-entendido: é um sinal de não-cultura, de incultura, de cultura que vai para o lado errado, de desproporção entre o material e a energia de cultura) [Então, todas essas negações da educação genuína.] e descrevê-la é uma tarefa quase infinita. Alcança a mais alta esfera intelectual.
Que o editor da Geração se esconda atrás do fato de que “centenas de pessoas telefonam diariamente para a editora perguntando ansiosamente se e quando o livro vai sair” é algo deveras preocupante. E que o publisher da casa compare uma pessoa que se posiciona honesta, clara e contrariamente ao lançamento comercial com Hitler, mais do que preocupante, é um sintoma da doença descrita por Musil e citada por Voegelin. No meu entender, é um álibi muito frágil que a edição seja crítica, comentada etc., porque não disfarça os interesses reais e a pobreza moral dos que se escondem atrás dele, ambos, pobreza e interesses, cintilando nas fraturas expostas do discurso (“um clássico como outro qualquer”, “ansioso para adquirir?”, “agindo como o próprio Hitler”).
“Consideramos esse debate encerrado”, disse Novaes ao Estadão, “e estamos apenas dando informações para a sociedade.” A pressa em encerrar o debate é típica dos que não têm capacidade para se posicionar racional e moralmente nele. E a desculpa de que estão “apenas dando informações para a sociedade” só reforça a irreflexão e o descuido daqueles que, dizendo fazer o bem, estão na verdade vendendo o mal.
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Espero que as livrarias se recusem a comercializar Minha Luta. Assinei um manifesto pedindo isso hoje cedo. Que muitos mais também assinem.
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