Noite eterna

Texto publicado hoje n’O Popular.

Borgo

“Caracas parecia acolhedora e ao mesmo tempo terrível”, escreve Karina Sainz Borgo em Noite em Caracas, “o ninho aquecido de um animal que me olhava com olhos de serpente raivosa em meio à escuridão.” Romance de estreia da venezuelana nascida em 1982, lançado no Brasil pela Intrínseca (com tradução de Livia Deorsola), o livro é um passeio infernal por um país arruinado, em que viver “tinha se transformado em sair para caçar e voltar vivo” – desgraçada por uma ditadura sanguinária, a Venezuela não é uma nação, mas “uma trituradora”, um “país sem dentes que degola galinhas”.

Narrado por Adelaida, Noite em Caracas começa com um enterro (da mãe da protagonista) e termina com uma espécie de renascimento. A única forma de escapar com vida da trituradora é se escondendo e, se e quando possível, fugindo. Nesse sentido, o romance enseja duas descrições: da violação e assassinato de um país pelas mãos de “patriotas”; e da fuga empreendida pela narradora, que mergulha no próprio passado – e no passado de uma vizinha – para não ser despedaçada pela própria nação.

Borgo investe nessa fuga como se a própria História lhe apontasse uma arma e exigisse fidedignidade. Nada mais justo, até por respeito aos inúmeros degolados pela galinha sem dentes, e nada mais doloroso, pois o ex-país ali retratado é contínua e cinicamente estuprado por mentiras e transformado em uma arena de psicopatas e ladrões, uma “fossa séptica” atulhada de corpos desmembrados. Concisa e agressiva, a narrativa avança conforme o desespero da protagonista, que não enxerga um limite para tantas desgraças, e as únicas saídas possíveis são individuais, jamais coletivas.

A jornada de Adelaida é solitária, mas, por alguns dias, ela ganha a companhia de Santiago. Irmão de uma amiga dos tempos da faculdade – Adelaida é formada em Letras, isso em um país no qual os indivíduos se esmeram em abrir a garganta dos desafetos e puxar a língua para fora, deixando-a dependurada feito uma gravata –, Santiago está em fuga. Preso e torturado, viu-se obrigado a compor as hostes governistas em sua batalha campal contra os dissidentes. Em meio à confusão, refugia-se no prédio de Adelaida, a quem narra os horrores que sofreu nas mãos dos “Bastardos da Pátria”. A visita de Santiago termina de forma abrupta, e a impressão é que o infeliz só passa pela narrativa (depois conheceremos seu destino) para deixar ali seu testemunho antes de ser novamente engolido pela noite.

Um exemplo da ruína venezuelana é o edifício Helicoide, citado de passagem por Santiago. A tradutora esclarece: “Projetado nos anos 1950, (…) é um dos símbolos da arquitetura modernista venezuelana”, mas foi transformado em uma prisão “dirigida pelo Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional”. Que um orgulho arquitetônico se torne um moedor de carne humana diz muito do estado terminal da nação.

No Brasil, a Venezuela sempre foi usada como elemento retórico. Boçais à esquerda ainda encontram razões para defender seu regime ditatorial; asnos à direita ameaçam os ignorantes com a “possibilidade” de o Brasil ter um destino similar se cair na mão dos “comunistas”. Mas, ironicamente, dadas as intervenções perversas do nosso atual presidente, é um governo de extrema direita que mais aproxima o Brasil do desgraçamento antidemocrático venezuelano. Quem diria, não é mesmo?