Estamos todos doentes

Trecho de DENTES NEGROS
(Rocco, 2011)
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Eles estão sentados à mesa do bar, outra vez em silêncio. Ela é muito jovem e ele não sabe o que ela faz, não se lembra quem os apresentou, não sabe com quem ela chegou àquela mesa, ele chegou depois e ela já estava lá. Dois órfãos, ela baiana, ele goiano, suas terras natais devastadas, suas famílias, e ele pensa sobre o que ela disse antes, aquilo sobre eles estarem envenenados, algo assim, e pergunta:
O que você quis dizer com aquilo?
Aquilo o quê?
Você disse algo sobre a gente estar envenenado até os ossos. Ou a partir deles. Algo assim.
Disse, sim.
O que você quis dizer?
Você sabe.
Não estamos doentes. A vacina funciona. Somos todos vacinados aqui. Nossos ossos estão salvos.
Não estão, não. Você sabe, a vacina não elimina a doença. Ela impede que os sintomas apareçam, isso sim. Ela constrói um monte de pequenas jaulas para os antígenos e transforma o nosso corpo num imenso calabouço. Somos todos bastilhas ambulantes. Estamos todos doentes, e doentes até os ossos. A doença está dentro da gente e nunca vai sair.
Está dentro da gente e nunca vai sair, ele repete.
Hugo sabe disso, sempre soube. Leu sobre, viu e ouviu na televisão. Mas nunca pensou a respeito. Nunca disse isso em voz alta.
As filas, as pessoas tomando a vacina quando tudo parecia perdido, quando parecia que a desgraça chegaria até eles, inclemente, quando parecia inevitável. Antes, os sobreviventes migrando para o sul e para o sudeste e sendo isolados e estudados, quando não mortos por algum soldado afoito ou por civis descontrolados, que pareciam dizer, e às vezes diziam, gritavam:
Por que vocês não ficaram lá e morreram?
A coisa dentro deles, paralisada, mas dentro deles para sempre, e depois dentro dele, Hugo, e de todos os outros, todos devidamente vacinados.
Calabouços ambulantes.
Hugo pensa em um tio que certa vez, há muito tempo, levou um tiro e a bala se alojou em seu corpo. Não quiseram tirar. Os médicos disseram que causaria mais danos abri-lo e tirar a bala do que deixá-la lá dentro. As radiografias, o projétil visível. A doença em nós é assim, visível feito aquela bala?