Janela de tempo

Artigo publicado em 24.12.2019 n’O Popular.

Vonn

Conforme o combinado, após discorrer sobre Café da Manhã dos Campeões há duas semanas, hoje me debruço sobre Matadouro-Cinco, um dos romances mais conhecidos de Kurt Vonnegut. A fama talvez se deva, em parte, à ótima adaptação cinematográfica do livro, dirigida por George Roy Hill (de Butch Cassidy e Golpe de Mestre), premiada em Cannes e bastante elogiada pelo próprio autor do livro. A nova edição brasileira do romance foi lançada pela Intrínseca, com tradução de Daniel Pellizzari.

Originalmente publicado nos EUA em 1969, Matadouro-Cinco tem como ponto de partida uma experiência vivida por Vonnegut: em fevereiro de 1945, ele era prisioneiro de guerra dos alemães em Dresden e sobreviveu, por um milagre, ao horrendo bombardeio da cidade por parte dos aliados. Para se ter uma ideia do que foram esses ataques, dezenas de milhares de pessoas morreram, a maioria civis, e boa parte da cidade foi reduzida a pó: “Dresden estava parecida com a Lua, sem nada além de minerais. As pedras estavam quentes”. Se o leitor aí tiver curiosidade para saber mais a respeito desse crime de guerra, sugiro a leitura do extraordinário Guerra Aérea e Literatura, de W. G. Sebald.

Para mergulhar naquela “tempestade de fogo” e em sua própria experiência no campo de batalha, Vonnegut — que também aparece no livro, às vezes em circunstâncias bem indignas (como no lance das latrinas) — cria o personagem Billy Pilgrim, inspirado em um de seus companheiros de farda. A trama desenvolvida ali é das mais rocambolescas e envolve desde abdução por alienígenas até viagens no tempo. Kilgore Trout, figura recorrente nos livros do autor, também aparece por ali.

Em seu ótimo prefácio à edição, o escritor brasileiro Antônio Xerxenesky situa a obra de Vonnegut no âmbito da prosa pós-modernista e a coloca ao lado das obras-primas O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon, e Ardil 22, de Joseph Heller, que também abordaram a Segunda Guerra Mundial. Xerxenesky esclarece: “Pynchon irmana-se a Vonnegut ao se apropriar de tópicos da ficção científica para narrar um momento histórico, e ainda ao misturar com um tom ocasional de comédia pastelão e desenho animado”.

Como se vê, a diferença está no fato de que Matadouro-Cinco, pelo próprio estilo do autor, é bem mais acessível do que O Arco-Íris da Gravidade. Brincando com a própria estrutura da prosa de ficção, em que momentos distintos das vidas dos personagens são abordados conforme o que o autor tem em mente, Pilgrim é alguém “solto no tempo”, isto é, vivencia presente, passado e futuro de forma aleatória, passeando por momentos distintos da própria existência. “Todos os momentos — passado, presente e futuro — sempre existirão, sempre vão existir”, e as coisas são “assim mesmo” ou, como diz um dos alienígenas que abduzem Billy, são “estruturadas” assim — incluindo o fim do universo, revelado a certa altura sem maiores dramas.

A aparente simplicidade do estilo de Vonnegut torna ainda mais estarrecedoras e emocionantes passagens como as que descrevem o longo comboio de prisioneiros rumo a Dresden e, claro, o bombardeio da cidade alemã. Talvez a beleza maior do livro resida aí, na forma que o autor encontrou para deslindar eventos tão terríveis. Há certa resignação nesse olhar agridoce, algo que ajuda indivíduos tão maltratados a “reinventar a si mesmos e ao seu universo”. Tal reinvenção é (ou deveria ser) cotidiana, e diz respeito a cada mínima coisa que fazemos e pensamos. “É assim mesmo.”