A cauda do Cão

The-Irishman-Martin-Scorsese

Que fazer com este absurdo —
Oh coração, Oh inquieto coração — esta caricatura,
Esta decrépita idade que me ataram
Como à cauda de um cão?¹
— Yeats, em “A Torre”.

O Irlandês, de Martin Scorsese, é um filme que se ocupa mais da mecânica da alma que da mecânica da máfia, coisa óbvia desde o plano de abertura: a câmera desliza pelos corredores do asilo onde Frank Sheeran (Robert De Niro) espera a morte, e por ali vemos duas imagens da Virgem e um padre. Passamos por eles rumo àquele que, sozinho com seus fantasmas, está pronto para assumir o posto nada confiável de narrador. É a voz de Sheeran que nos guiará pelas entranhas dessa outra história americana, desfiada com uma lentidão imprescindível para que contemplemos as ambiguidades, os subentendidos, os mal entendidos e as hipocrisias típicas de um mundo (ingenuidade chamar de “submundo”) tão repleto de regras que, volta e meia, todas e cada uma delas perdem o sentido e são ignoradas.

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Sublinhe-se que, em boa parte da filmografia de Scorsese, e aqui incluo seu segundo filme, o curta-metragem It’s Not Just You, Murray! (1964), a mecânica da alma e a mecânica da máfia são inextrincáveis. Vide os “pecados pagos na rua” em Caminhos Perigosos (1973) ou a danação explícita no fogo que a tudo consome (ao som da Paixão Segundo São Mateus, de Bach) em Cassino (1995).

Em Caminhos Perigosos, o gangster pé-de-chinelo Charlie (Harvey Keitel) mantém desde o primeiro momento um diálogo surdo com o Criador. Na igreja ou no bar, quando busca o fogo, ele o faz com a certeza de que não escapará. Dos bandidos de Scorsese, Charlie talvez seja o mais consciente da expiação que o aguarda na próxima esquina ou na seguinte.

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Por sua vez, o mezzo-irlandês Henry Hill (Ray Liotta), de Os Bons Companheiros (1990), não tem a consciência de Charlie. A despeito das décadas de envolvimento com o crime organizado, ele é uma espécie de turista que, acossado, entrega meio mundo para se safar. Ao final, quebrando a quarta parede com um sorriso safado, diz não sentir saudades dos “goodfellas”, mas da tigela de cocaína ao lado da cama e do espaguete de boa qualidade. Note-se, ademais, que Henry julga não sujar as mãos: quando os amigos trucidam um desafeto, ele observa, mas não toma parte do homicídio ou intervém (embora depois ajude a enterrar, desenterrar e enterrar de novo o corpo do disgraziato). A inação faz maravilhas pelo autoengano.

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Em Cassino, o judeu Sam “Ace” Rothstein (Robert De Niro) não arrasta quaisquer correntes católicas, mas, como Charlie, tem alguma consciência do fogo. Na verdade, Rothstein tem os olhos voltados para aquilo (a Las Vegas dos “anos dourados”, gerenciada pela máfia, de quem “ganha” um cassino para administrar) que enxerga como uma espécie de jardim edênico, o qual tenta proteger de todos — menos de si mesmo. Quando se dá conta das chamas, é porque está prestes a ir pelos ares. O fogo destrói aquele pseudo-paraíso cercado pelo deserto e pelos corpos enterrados no deserto; invenção da máfia, Las Vegas é, afinal, uma autêntica necrópole.

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Sendo o primeiro narrador não confiável da obra do diretor, o tolo Murray não desce a tais profundezas, mas já aponta para elas. Há uma sequência no curta em que o amigo do protagonista oferece uma série de conselhos (“pega leve, não esquenta com a encheção dos outros” etc.) e diz, por fim, que vai chegar o dia em que Murray vai encontrar alguém que representará todos aqueles que lhe fizeram mal, e então será o momento de dar o troco. No entanto, quando isso é dito, a imagem que vemos é a de Murray diante de um espelho.

It’s Not Just You, Murray! é, claro, uma comédia, ao passo que O Irlandês está mais para uma Commedia, um mergulho dantesco-infernal, às cegas, sem um Virgílio para guiar o narrador, sem qualquer possibilidade de retorno ou ascensão. Em seu Inferno, a exemplo do que faz Murray, o irlandês Sheeran também nos mostra, com orgulho, aonde chegou graças à ajuda de um amigo, Russell Bufalino (Joe Pesci). Não se trata de um amigo qualquer, pois Bufalino é o cabeça da família mafiosa homônima, cuja influência é inversamente proporcional ao seu tamanho (pequeno, se compararmos com as estruturas de cada uma das famigeradas Cinco Famílias de Nova York).

Veterano da Segunda Guerra Mundial, Sheeran se torna um associado (jamais, obviamente, um made man, dada a sua ascendência) da família Bufalino e, segundo o seu relato, um amigo muito próximo de Russell, quase um consiglieri. Por meio do chefe, é apresentado ao então poderosíssimo líder sindical Jimmy Hoffa (Al Pacino), e o triângulo está formado. Enormes mudanças ocorrem no crime organizado e em seus arredores nas décadas de 1960 e 70, algumas das quais percorrem o filme como um desfile de homens entregues à hýbris: as eleições fraudadas, o mandato desastrado e o assassinato de John F. Kennedy; a guerra pelo controle da família Profaci (depois Colombo), culminando na execução de “Crazy” Joe Gallo (Sebastian Maniscalco); e, por fim, a disputa intestina entre Hoffa e Anthony Provenzano (Stephen Graham) pelos bilhões do sindicato agigantado pelo primeiro.

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O amargor da coisa, a exemplo do que ocorre em Murray e em Os Bons Companheiros, está bastante atrelado aos ruídos e contradições entre o que nos diz a voz do narrador e as imagens que se desenrolam na tela. Mas, diferentemente de Henry Hill, o narrador de O Irlandês não tem qualquer senso de ironia. Enquanto Henry, fechando o porta-malas com o sujeito que seus amigos acabaram de matar, fala sobre como “sempre quis ser um gangster” e dá início a uma recapitulação sardônica de sua “educação sentimental”, Sheeran, na festa em que a situação de Hoffa se revela insustentável, diz ao próprio que “está com ele até o fim” — em inglês, a ironia é ainda mais óbvia: “I’m behind you, Jimmy, all the way”. E ele diz isso com sinceridade, emocionado, ao mesmo tempo em que alimenta seu autoengano.

Por essas e outras, Sheeran parece mais próximo de Murray do que de Henry, pois é um pateta, uma ferramenta, uma espécie de Forrest Gump envenenado pela psicopatia, alguém que “segue ordens”, e pronto. Sua lealdade não é sinal de caráter, mas de fraqueza e cegueira moral. Ele até percebe o vácuo que cresce ao seu redor, mas o abismo — exceto nos momentos em que é silenciosamente confrontado pela filha — não o olha de volta. É um personagem que sequer chega a ser trágico, pois, ao contrário (por exemplo) de um Michael Corleone ou mesmo do pé-de-chinelo Charlie, a expiação não vem a galope, mas “apenas” se insinua nos silêncios acachapantes da parte final do longa. Ali, a solidão é reiterada nos lapsos de suas conversas com a enfermeira e o padre, na recusa da filha em vê-lo, no apelo inútil dos agentes do FBI para que faça algo pela família de Hoffa e, por fim, naquela porta que ele pede ao padre que deixe entreaberta.

Logo, ao contrário do que vemos em Caminhos PerigososTouro Indomável, não há redenção ou, melhor dizendo, a redenção é uma miragem, é aquela porta entreaberta para o corredor vazio e escuro, nada mais é do que outro índice do alheamento e da psicopatia de Sheeran. Aquele velho que vemos ali, vivendo seus momentos derradeiros na mais absoluta solidão, não está pronto para a redenção, pois sequer compreende o seu sentido. Sheeran não é atingido (literal e figurativamente) e se ajoelha no meio da rua como Charlie, ou tampouco soca as paredes de uma cela até quebrar as mãos, berrando “não sou um animal, não sou um animal”, como La Motta em Touro Indomável. Pelo contrário, ele murcha e se cala; a exemplo dos soldados inimigos que executou na guerra, é alguém que cava a própria cova e, de novo, é incapaz de perceber a ironia abrasiva do que diz: “É maluquice, mas eu nunca entendi por que eles continuavam cavando a própria cova, sabe?”.

Sheeran percebe o abismo moral, mas não toma qualquer atitude contrária a ele: seu constrangimento diante da filha Peggy (Lucy Gallina e, quando mais velha, Anna Paquin) e o balbucio patético sobre um determinado telefonema são os exemplos mais óbvios dessa inação demoníaca. Da mesma forma, quando sua “missão” mais espinhosa é ordenada por Russell, penso que a pequena hesitação que vemos na tela diz menos respeito à dor de assassinar alguém muito próximo e mais à consciência de que, se não o fizer, se não obedecer mais uma vez, terá o mesmo destino que o outro.

Sheeran está amarrado à cauda do Cão, e aquele (quando recebe a ordem) é um dos raros momentos em que tem consciência disso, embora, mais uma vez, siga em frente, cumpra com o que foi ordenado e, ironicamente, concretize a “promessa” feita à vítima: “I’m behind you, Jimmy, all the way”. O percurso que se repete e se repete no carro, prolongado ao máximo por Scorsese, é importantíssimo para sublinhar o comprometimento do protagonista com o ato de cavar a própria cova enquanto conduz outrem para a morte. A discussão sobre o peixe não está ali por acaso: o “cheiro” da ação oriunda da inação jamais nos deixa, nunca nos abandona, e estará conosco até no cemitério, com os vermes.

A ação nascida da inação é o exercício deliberado do mal. Do ponto de vista do irlandês e de seu esforço escusatório, aquilo é “apenas” trabalho. Um dia ruim, um dia tenso, um dia sofrido, mas ainda, e tão somente, um dia de trabalho. É a mecânica da máfia, e ela é tudo o que resta quando — assim como o motor pifado do caminhão — nós nos descuidamos da mecânica da alma. Eis, em suma, algo que independe da crença ou da descrença de cada espectador, embora estejamos diante de uma obra cujo catolicismo escorre de cada parede “pintada” pelo personagem-título: o bem e a vida “reta” requerem esforço, resiliência, questionamento constante e eterna incerteza; o mal e a vida naquela estrada, com suas pausas para fumar, cobrar dívidas e matar, exsudam preguiça, pusilanimidade, ordens seguidas quase sem hesitação e a certeza de que tudo aquilo são “apenas negócios”.

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O horror dos cômodos vazios em “Os Bons Companheiros” e “O Irlandês”.

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Em tempo: conversei sobre o filme e a obra de Scorsese com Martim Vasques da Cunha e Luis Villaverde no podcast Extremistão. Confira AQUI.

¹ Em W. B. Yeats – Uma Antologia (tradução: José Agostinho Baptista. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996). Versos originais: “What shall I do with this absurdity — / O heart, O troubled heart — this caricature, / Decrepit age that has been tied to me / As to a dog’s tail?”.