Dos reconhecimentos possíveis

Recognitions

Mas você está… você está trabalhando. Você é um artista?
— Sim, e vivi como um ladrão.

1.

The Recognitions¹ é o romance de estreia do nova-iorquino William Gaddis (1922-1998). Quando de seu lançamento, em 1955, foi massacrado pela crítica (que, salvo por algumas raras exceções, nem se deu ao trabalho de ler o calhamaço de quase mil páginas) e ignorado pelo público. Duas décadas se passaram antes que Gaddis voltasse a publicar. Pelo não menos ambicioso JR, ele enfim obteve reconhecimento: o livro foi agraciado com o National Book Award e o interesse por seu trabalho cresceu. Nas décadas seguintes, escreveu outros três romances, tão desconcertantes quanto seus predecessores: Carpenter’s Gothic (1985), A Frolic of His Own (1994, também vencedor do National Book Award) e Agapé Agape (lançado postumamente, em 2002).

O homem é um dos grandes autores surgidos no pós-guerra. É fácil reconhecer sua sombra até o presente, em ficcionistas de todas as gerações seguintes. Mas, vinte anos após sua morte, e exceto por uma edição já esgotada de Carpenter’s Gothic (traduzido por Muriel Alves Brazil como Alguém parado lá fora e lançado pela editora Best Seller), Gaddis segue inédito no Brasil. Talvez seja o momento de reparar essa falta enorme.

The Recognitions é um livro tão difícil quanto extraordinariamente belo. Em se tratando das letras norte-americanas desde a segunda metade do século XX, a profundidade de suas perquirições só é comparável à do Thomas Pynchon de O Arco-Íris da Gravidade. Gaddis é o chão de onde brotaram John Barth, William H. Gass (outro gigante, falecido há pouco tempo), Don DeLillo, David Foster Wallace e o já citado Pynchon. E, passando pelo berçário, não custa nada assinalar que até o pequeno Jonathan Franzen tentou beber dessa fonte (e, previsivelmente, engasgou-se).

2.

Em The Recognitions, Gaddis espelha a escuridade anímica (dele, sua, minha) na obscuridade narrativa, mas nos faz a gentileza de, ao final, implodindo (com música sacra) as paredes e o teto de uma igreja condenada, apontar inequivocamente para o alto.

Tentarei explicar isso melhor.

Como toda e qualquer obra de arte digna de ser considerada como tal, esse romance diz respeito a uma busca. Desde o título — homônimo de um “romance teológico” do século III, dos primórdios do cristianismo, relativo a Clemente de Roma — até a maneira como introduz seus temas e personagens, passando pelas epígrafes que abrem cada um dos capítulos², Gaddis propõe uma odisseia em que a busca pela autodescoberta e por reconhecimento, seja de que espécie for, quase sempre resulta em um descolamento da realidade imediata e, não raro, do próprio eu.

A espinha dorsal da narrativa diz respeito ao pintor Wyatt Gwyon, cujo pai é um presbítero da Nova Inglaterra que abraçou o mitraísmo depois de perder a mulher — primeiro movimento de irreconhecimento que irrompe do livro. Após sofrer um contratempo em sua carreira, Wyatt deixa-se aliciar por um mefistofélico contraventor chamado Recktall Brown e passa a forjar telas “perdidas” de mestres como Bosch e Van Eyck, integrando uma lucrativa rede criminosa que, entre outros, inclui o crítico de arte Basil Valentine, responsável por ajudar na autenticação das pinturas depois que elas são “encontradas”.

Das ironias: o contratempo citado acima é fruto da honestidade de Wyatt, que se recusa a fazer um “acerto” com um crítico (que elogiaria seu trabalho em troca de uma porcentagem sobre as vendas); e seu insucesso como pintor também se deve à concepção anacrônica que possui do fazer artístico, incorporando técnicas e crenças renascentistas segundo as quais o que ele faz é algo deiformemente guiado e observado. Traduzo (apressada e canhestramente) um trecho (p. 251):

(…) Porque eles viam Deus em toda parte. Não havia nada que Deus não observasse, nada, e então isso… e então cada detalhe da pintura reflete… a preocupação de Deus com os objetos mais insignificantes da vida, com todas as coisas, pois Deus não descansa por um instante sequer, e nem o pintor poderia descansar. Você vê a perspectiva nisso? — ele perguntou, segurando a réplica amarrotada diante deles. — Não tem nenhuma.

Dezenas de outros personagens pipocam nas páginas, não raro em longos capítulos crivados de diálogos — marca registrada do autor, que em romances posteriores radicalizaria tal expediente. São aspirantes a poetas, aspirantes a dramaturgos, aspirantes a romancistas, aspirantes à paternidade, viciados, falsificadores, editores, todos (se) debatendo com todos, falando sem parar em festas, bares, restaurantes, parques, zoológicos e calçadas.

No decorrer do livro, há pelo menos duas festas agitadíssimas, uma delas (sétimo capítulo da parte II) na véspera de Natal, onde a cacofonia, os desencontros e as maluquices atingem níveis hilariantemente absurdos: uma criança bate à porta a todo instante e pede pílulas para a mãe, obtendo-as sem problemas; um gato é acidentalmente morto por uma convidada, que trata de ocultar o cadáver em sua bolsa, furtada mais tarde (passagem que David Foster Wallace talvez tivesse em mente ao bolar aquela história do coração na bolsa (sic) em Graça Infinita); um bebê passeia por ali e é afinal sequestrado por uma infeliz, que depois será abandonada pelo marido (ele se assume homossexual); alguém se tranca no banheiro e tenta se matar com uma navalha; um crítico é exposto diante de todos como um rematado punheteiro (“Vá pra casa com sua amante, a velha senhora cinco dedos…”), e depois, sozinho com a dona do apartamento, faz jus à fama; a música de Handel ressoa sem parar ao fundo; etc.

Todos os personagens, em algum nível, em um ou mais momentos, por alguma razão, ação ou inação, alimentam os irreconhecimentos que percorrem a narrativa. Exemplos: Esther, mulher de Wyatt e aspirante a escritora, vê no marido algo que ele poderia ou deveria ser (a saber: um reverendo como Gwyon), coisa da qual se distanciou (ou irreconheceu) para pintar; Otto, sempre em fuga (dos EUA para a América Central, da América Central para os EUA, de Esther para Esmé, de Esmé para a América Central), escreve uma peça que poucos leem, mas pela qual todos acusam-no (com níveis variados de animosidade) de plágio; Esmé, poeta, modelo, suicida, viciada, espelha de maneira corrompida a imagem da mãe de Wyatt (e escreve numa carta para ele, antes de ir para casa e tentar se matar: “Pinturas são metáforas da realidade, mas, em vez de auxiliar na sua realização, elas obscurecem a realidade, que é muito mais profunda. A única maneira de eludir a pintura é pela morte absoluta”); Stanley, um músico católico, está sempre às voltas com uma composição em homenagem à mãe diabética e moribunda (depois suicida), cuja execução só se dará no epílogo, quando o romance rui sobre si mesmo para edificar e sustentar a nossa compreensão dele; Sinisterra, responsável logo no começo por matar a mãe de Wyatt (quando, no meio de uma viagem marítima, ela é acometida por uma apendicite e ele se faz passar por médico), tropeça nele décadas mais tarde, junto ao túmulo (vazio) dela, para rebatizá-lo conforme seus pais um dia quiseram chamá-lo.

3.

Esse encontro com Sinisterra talvez seja o primeiro sinal de que o protagonista, após tanto errar pelo mundo, é empurrado rumo a algum (auto?)reconhecimento. De fato, no que diz respeito a Wyatt, três passagens me parecem cruciais para compreender como o romance é animado por sua busca repleta de frustrações, busca que, ao final, não obstante toda a ambiguidade da cena e a aparente loucura do personagem, encontra um desfecho apaziguador.

Na primeira dessas passagens, o terceiro capítulo da segunda parte, temos mais uma sequência perturbadora de irreconhecimentos. Fora de si, planejando expor o esquema de falsificações que integra, Wyatt retorna brevemente à casa do pai. Este pensa que o filho voltou para se tornar um sacerdote mitraísta; o avô materno confunde-o com ninguém menos que o mítico Preste João; a empregada acha que ele é o próprio Cristo redivivo; e, como se não bastasse, o próprio Wyatt julga ser o reformista Jan Huss (queimado numa fogueira no começo do século XV).

Mais irreconhecimentos: naquele outro trecho, citado acima, em que se dá o encontro de Wyatt com o assassino da mãe, eles não por acaso se associam momentaneamente numa jogada que, para variar, envolve uma falsificação.

Por fim, no quinto capítulo da terceira parte, o último antes do epílogo, reencontramos Wyatt em um monastério (o mesmo no qual seu pai se refugiara décadas antes, depois de perder a mulher), não mais falsificando, mas restaurando pinturas de forma nada ortodoxa. Não se trata, por certo, de uma redenção. Contudo, em dois longos diálogos entre ele e o “distinto romancista” Ludy, é possível, sim, ver como o protagonista enfim alcança algum reconhecimento de si, antes de se despedir acenando com a possibilidade real, embora inacessível para seu interlocutor, de uma epifania.

Wyatt está, ali, “vivendo através da culpa” — e o termo “através” me parece essencial, na medida em que alude a uma travessia inclusive física, que se confunde com suas idas e vindas pelo mundo afora e diz respeito à vida orgânica, mortal, contraposta à imortalidade possível, tangível, simbolizada pelas obras de arte que restaura.

 

4.

O procedimento de Gaddis, em que forma e conteúdo (e, reitero, personagens) se espelham mútua e incessantemente, autoenclausurados, cria uma tensão gigantesca. E essa tensão, muito embora seja aliviada aqui e ali por inúmeras passagens cômicas e absurdas³, remete à maneira como se concebe — no sentido mesmo de gerar — a própria obra de arte.

Dizendo de outro modo, é como se o romance, ao problematizar as noções de originalidade e autoria, ao aparentemente reconhecer que tais noções estejam inexoravelmente corrompidas no âmbito da contemporaneidade, terminasse — enquanto produto acabado, enquanto obra de arte irrepreensível — por reavivá-las. Cada negação, distanciamento ou irreconhecimento é aparente, pontual e superficial, ao passo que o que se realiza é o romance em si e também nós que o lemos, quando o lemos, reconhecendo-o (enquanto obra de arte que se/nos espelha), reconhecendo o outro (seja o autor, sejam os personagens, sejam os outros leitores) e reconhecendo a nós mesmos ao fazê-lo, na medida em que podemos, ou melhor, porque conseguimos e ainda nos é permitido fazê-lo.

No meu entender, The Recognitions trata, afinal, da possibilidade desse reconhecimento maior, mais profundo e irrestrito, intrínseco e extrínseco à obra de arte, mas jamais extrínseco à natureza humana. Tal possibilidade é presentificada pelo próprio livro, assim disposto à nossa frente em toda a sua beleza, pronto para ser (re)conhecido. 

…………

¹ Dispus da edição lançada pela Dalkey Archive Press em 2012, com prefácio de William H. Gass. Uma nova edição foi lançada em 2020 pela New York Review of Books, com introdução de Tom McCarthy (e o texto de Gass como posfácio). Uma versão deste meu ensaio foi publicada no Rascunho em janeiro de 2019.

² Sobretudo a primeira dessas epígrafes, atribuída a Santo Irineu: Nihil cavum neque sine signo apud Deum, “Em Deus nada é vazio de sentido” — lembre-se dela quando chegar ao final do penúltimo capítulo.

³ Além das passagens que citei acima, ao me referir à festa de Natal, há também o momento em que Otto e um comparsa invadem uma funerária, furtam uma perna amputada e tentam deixá-la na casa de Stanley, a fim de assustá-lo (e ignorando o fato de que o membro pertencia à mãe diabética dele).