Meu passado nazista

“Noção terás do que é o ermo, a solidão?”
— Goethe, no Fausto.

zelig

1. Era o começo dos anos noventa do século passado, era o interior de Goiás, era o governo Collor (não por muito tempo), e lá estava aquele sujeito que, parado no topo da escada, fazia Sieg Heil para a molecada reunida no alpendre, o braço direito estendido e a voz altissonando: “Heil Hitler!”.

1.1 O sujeito era pai de um colega de escola que eu visitava quase todos os dias. Eu e o colega jogávamos Mega Drive, Streets of RageDesert Strike, Golden Axe, ou ouvíamos os vinis do irmão mais velho dele, Use Your Illusion (eu gostava mais do II, meu colega preferia o I, daí que ouvíamos ambos), o Black AlbumNevermind, The Real Thing, havia também uma coletânea dos Doors, ou assistíamos à televisão, eles tinham antena parabólica e um aparelho de muitas e muitas polegadas, era impressionante aquele caixotão de madeira (embora eu achasse a imagem escura demais) ali na sala, dominando a paisagem, impossível olhar noutra direção, para outra coisa, qualquer outra coisa.

1.2 O lance com o Sieg Heil acontecia sempre que o pai dele chegava, e a gente ria porque tínhamos dez, depois onze, depois doze anos, e aquele era o único Pai que tentava fazer alguma gracinha, os outros Pais não faziam nada ou simplesmente entravam e resmungavam um cumprimento qualquer antes de desaparecer. O sujeito surgia no topo da escada ou no cômodo onde estivéssemos (era uma casa grande), erguia o braço, “Heil Hitler!”, a gente ria e ele às vezes dava um tempinho por ali, jogava um pouco de videogame ou perguntava o que estávamos vendo ou ouvindo ou estudando, porque às vezes acontecia de estudarmos, já lancharam?, era o único Pai que fazia todas essas coisas, e a gente (a turminha do filho caçula) não desgostava nem tinha medo dele, o que naquela idade significava muito, vamos concordar.

2. Demorou algum tempo para que eu entendesse certas coisas, e então era o governo Itamar, mas ainda eram os anos noventa do século passado, ainda era o interior de Goiás, a mesma casa, o mesmo Sieg Heil, que deixou de ser engraçadinho ou “diferente” depois que aprendi uma coisinha ou outra, meio que sem querer, e me inteirei de alguns fatos que, certo dia, o meu colega — estávamos de novo na casa dele, onde mais?, sentados no tapete da sala, ouvindo In Utero — negou, não foi bem assim, meu pai me explicou, ferraram muito a Alemanha com aquele tratado lá, como é que o nome?, ele só fez o que precisava fazer, e esses judeus, bicho, ah, puta que pariu, deixa eu te falar desses judeus, e eu até deixava, beleza, fala aí, mas a conversa morria pouco depois e era evidente que, embora quisesse, o meu colega não tinha muito o que falar “desses judeus”, nada além de ideias genéricas e obscuras, aproveitadores, sacanas, meu pai, ele me explicou tudo, ele me explicou tudinho.

2.1 Meu desconforto aumentou gradativamente, fosse pelas coisas que o colega dizia e/ou ensaiava dizer sempre que determinados assuntos surgiam, fosse porque o pai dele não se cansava do Sieg Heil. A essa altura eu já não conseguia rir ou disfarçar ou embarcar na “brincadeirinha”, mas nenhum deles parecia se importar, ninguém ali parecia se importar, a palhaçada se dava do mesmo jeito, os outros colegas riam do mesmo jeito, a vida seguia do mesmo jeito.

2.2 Não sei por que continuei a frequentar a casa desse colega; talvez porque aos treze anos as coisas não fossem tão simples, ou eu pressentisse que elas só complicariam com o passar do tempo. E aquele era o “melhor amigo” — onde encontraria outro? Entretanto, no que diz respeito ao Sieg Heil, passei a sentir cada vez mais vergonha por algum dia ter achado graça de tamanha imbecilidade. E também comecei a sentir raiva de mim por não conseguir me afastar.

3. Muitos e muitos anos depois, em Israel, contei essas coisas para um conhecido. Estávamos sentados a uma mesa na Ben Yehuda, bebendo e comendo não me lembro o quê. Fazia muito calor. Era o sharav.

3.1 Esse conhecido era francês, recém-instalado em Jerusalém. Dizia trabalhar como fotógrafo, mas nunca me explicou direito o que fazia por lá e eu tampouco quis saber. Dizia também não conhecer a América Latina e estar curioso sobre o Brasil. Falei, então, dos anos noventa do século passado, falei do interior de Goiás, falei do sujeito parado no topo da escada, o braço direito estendido e a voz altissonando: “Heil Hitler!”. Falei de como a gente achava isso engraçado aos dez, onze, doze anos, falei de como isso aos poucos foi me parecendo mais e mais escroto, até o momento em que senti vergonha por algum dia ter achado graça de tamanha imbecilidade.

3.2 Quando parei de falar, o francês respirou fundo, tomou um gole do que quer que estivesse bebendo e disse, antes de gargalhar: “Você se envergonha do seu passado nazista”.

4. Eram os anos noventa do século passado, e também foi na casa daquele meu colega que ouvi o pai dele dizer, referindo-se a Collor, PC Farias e cia., o escândalo então no auge, que na época da revolução (sic) não tinha nada dessas coisas, não tinha roubalheira, não tinha safadeza, era tudo bem diferente. Mais tarde, em casa, comentei a respeito com o meu pai e ele bufou (estava sempre bufando) e disse que na época da ditadura (sic) era tudo bem diferente, sim, mas por outras razões. Ele disse isso e se calou, não entrou em detalhes.

4.1 (Meu velho nunca entrava em detalhes. A gente que se virasse para saber do que ele estava falando, que corresse atrás, que se informasse por conta própria e tirasse as nossas próprias conclusões. Essa sua recusa sistemática a entrar em detalhes foi uma das melhores coisas que poderia ter feito por mim.)

4.2 Essa outra história, sobre a noção sempre muito difundida de que a corrupção era algo estranho à ditadura militar, essa outra história eu não comentei com o francês, embora tivesse muito a ver com o que ele supostamente queria de mim naquela tarde (“saber mais do Brasil”). Senti preguiça de contextualizar a coisa, e estava cansado de falar do século passado, do interior de Goiás, do meu “passado nazista”.

5. O francês e eu deixamos a Ben Yehuda e fomos a um pub nas redondezas. O calor estava insuportável e uma cerveja cairia bem. No pub, papeamos sobre outras coisas, até porque nenhuma história que eu contasse seria capaz de rivalizar com as maluquices que o dono do lugar, um bielorrusso, conforme a noite se aproximava, curtia compartilhar com os fregueses. “Meu avô me contou uma coisa muito louca que ele viu quando era moleque”, ele começava, e quem estivesse ao balcão (eu sempre me sentava ao balcão) calava a boca para ouvir.

5.1 Eu tinha visto Vá e Veja e fazia alguma ideia do que significava ser moleque na Bielorrússia em meados da década de 1940. Mas, naquela tarde, por alguma razão, não consegui prestar atenção em nada. Mesmo quando o bielorrusso desandou a falar, entremeando o discurso com uma dose ou outra do que estivesse à mão (ele adorava infligir Bushmills aos fregueses) (aceitávamos de muito bom grado), continuei pensando no que contara ao francês, nós dois sentados a uma mesa no calçadão da Ben Yehuda, comendo e bebendo não me lembro o quê enquanto o sharav nos castigava, inclemente.

5.2 Eram os anos noventa do século passado, era o interior de Goiás, a igreja ainda ficava lotada nos feriados religiosos, as procissões tomavam as ruas durante a Semana Santa, o pai de um colega nos fazia rir com seus Sieg Heil e, em Jerusalém, rememorando essas coisas tanto tempo depois, senti mais vergonha do que nunca do meu passado nazista.