Depois do fim, antes do começo

Texto publicado no Blog da Rocco.

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Há dez anos, quando dei Dentes negros por terminado, não imaginava que a névoa apocalíptica que nos rodeia se adensaria tanto. Bom, talvez eu pressentisse isso (quem não?), mas não me lembro de tecer aquela narrativa com os olhos tão arregalados para o mundo ao redor, imaginando que o degringolamento geral e irrestrito era só uma questão de tempo. Na época, eu estava mais interessado em levar a cabo um projeto antigo: explorar um determinado gênero de narrativas pós-apocalípticas que, como leitor e espectador, palmilhei no decorrer da vida, do Último Homem de Mary Shelley ao Mad Max de George Miller, passando pelas investidas de Walter M. Miller Jr., Terry Gilliam, Cormac McCarthy, Andrei Tarkovski, Katsuhiro Otomo e, é claro, Margaret Atwood.

O fim do mundo é sempre uma boa ideia, eu vivia gracejando então, e a literatura e o cinema são provas (por enquanto) vivas disso.

O ponto de ruptura ensejado por Dentes negros envolve uma epidemia misteriosa, uma doença que mata em questão de segundos, deixando as vítimas com os dentes escurecidos. Por alguma razão, a tal epidemia se restringe à porção centro-norte do Brasil. Assim, quando ela é (aparentemente) debelada, boa parte da nação já se encontra devastada. Dois terços do livro procuram se ocupar daqueles que permaneceram, sugerindo ou ensaiando um recomeço possível.

Como se vê, não obstante a carga de violência que descolore suas páginas, Dentes negros é uma investida bem menos extrema do que os exemplos citados acima. Talvez eu ainda não estivesse preparado para me despedir do mundo tal e qual o conhecemos, ou para simplesmente acabar com ele de uma vez por todas (mas como seria um romance que chegasse a tanto? Sua metade final seria composta por páginas em branco?).

Oryx e Crake, o primeiro de uma trilogia que também inclui O Ano do Dilúvio e Maddadão, passa ao largo de tais hesitações. Margaret Atwood nos traz um protagonista lançado em um mundo que, a princípio, não apresenta lá muitas possibilidades de recomeço. O Homem das Neves, outrora Jimmy, talvez seja o último sobrevivente humano de uma catástrofe cujas causas e consequências imediatas são desveladas aos poucos. Junto dele há um bando de criaturas dóceis, “plácidas, como estátuas animadas”, “crianças grandes, de olhos verdes”, para as quais engendra uma espécie de mito da Criação envolvendo duas divindades, Oryx e Crake – os nomes da mulher por quem Jimmy era apaixonado e de seu melhor amigo, respectivamente. O romance se alterna entre o mundo “presente”, pós-catástrofe, e o passado, onde personagens e acontecimentos convergem para o desastre.

As criaturas com as quais o Homem das Neves convive são fruto da bioengenharia e remetem a Adão e Eva pré-Queda, embora, é evidente, não haja nada parecido com um Éden ao redor. Elas se regozijam com a desajeitada fabulação do protagonista, com sua capacidade de inventar um Gênesis que lhes apeteça, a narrativa borbulhando a partir do caos, por mais “perigoso” que isso talvez seja, pois: “Cuidado com a arte”, lemos perto do desfecho do romance. É uma fala de Crake, relembrada pelo Homem das Neves. “Assim que eles começarem a produzir arte, teremos problemas. Qualquer tipo de pensamento simbólico seria sinal de decadência, na opinião de Crake. Em seguida eles estariam inventando ídolos e funerais e oferendas para os túmulos, e vida após a morte, e pecado e Linear B, e reis, e depois escravidão e guerra.”

Depois do fim, antes do começo: o não-tempo e o não-lugar onde se passa Oryx e Crake são um produto direto do desvario humano, mas a ficção especulativa de Atwood vai muito além de um inventário (ou de um “alerta”) acerca do nosso descarrilamento. E, a meu ver, o “perigo” representado pela arte é, na verdade, uma das poucas coisas capazes de sustentar uma sobrevida não propriamente física – desde sempre ameaçada, neste mundo ou no pós-mundo imaginado por Atwood –, mas anímica. Pois, apesar de tudo, inclusive do passado, o Homem das Neves ainda se dispõe a aduzir uma ideia de mundo, uma narrativa originária que substancie a realidade dos outros e, por decorrência, a sua própria: “E ele não suportaria ser nada, saber que não era nada. Ele precisa ser ouvido, precisa de atenção”. Entre o fim e o começo, no “Grande Vazio”, ainda subsiste a necessidade não só de fabular, mas de fabular com e para os outros. Para mim, embora não seja o ponto fulcral, isso é o que há de mais belo no romance de Atwood.

Em Dentes negros, ainda que a desolação não seja tão irrefreada quanto em Oryx e Crake, há nos sobreviventes da Calamidade impulsos similares, primeiro em direção ao passado – o que perdemos, as histórias que contamos para nós mesmos e para os outros –, depois rumo ao próximo – as histórias ainda por vivenciar, apesar de toda a violência circundante, apesar das más lembranças e dos traumas, apesar da incerteza quanto ao futuro, apesar de tudo.

Penso que, nos dias de hoje, por conta daquele adensamento a que me referi no parágrafo inicial, abrir espaço para tais coisas – a exata noção do que perdemos e/ou poderemos perder, a importância da fabulação, a compreensão do outro (por mais diferente que seja) como parte imprescindível de nós mesmos – é uma boa maneira de se precaver contra o brutal instinto (auto)destruidor que, infelizmente, anima tantos entre nós. Até porque um traço comum à maior parte das narrativas apocalípticas e pós-apocalípticas é a noção de que o fim do nosso mundo não é algo que poderá acontecer em um futuro possível, mas, sim, que está em curso, que se desenrola aqui e agora, com maior ou menor celeridade, com mais ou menos violência. Daí que a chamada ficção especulativa tem os pés bem fincados no chão, até para melhor averiguar o seu esbororamento.