Primatas

Versão estendida da resenha publicada hoje no Estadão.

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A história de uma revolução malograda ou mesmo irrealizável, narrada em primeira pessoa pelo orangotango que a lideraria: eis o que o leitor encontra em O Orangotango Marxista, novo romance de Marcelo Rubens Paiva. Preso no “campo de concentração didático” conhecido como zoológico, o protagonista é um primata atípico, alfabetizado e leitor voraz, um animal mais próximo dos “macacos nus” (os humanos) que de seus companheiros de cativeiro.

Na infância, ele lê Batman, de quem se torna fã. “Existe uma sordidez em Batman que existiu em toda a minha infância”, afirma. Mais velho, depois de perceber “quem era meu inimigo, o que estava errado na minha vida e por que me transformei no prisioneiro de uma existência sem o menor sentido”, corrige o “rumo” e abraça o marxismo (depois de ter com Darwin, é claro), crente de que é possível usar as ideias revolucionárias para alavancar uma transformação real.

Mas, antes de ansiar pela liberdade, ele primeiro flerta com o amor. Vivendo no centro de pesquisas biológicas de uma universidade (destino muito mais aprazível do que os laboratórios farmacêuticos), apaixona-se por Kátia, sua tratadora, “uma tímida, linda, ruiva, amorosa e dedicada pesquisadora universitária” que, como não poderia deixar de ser, desgraça a vida do nosso herói. É a paixão, contudo, que o leva a se interessar pelas atividades extracurriculares, por assim dizer: acompanha as aulas de alfabetização dos filhos dos funcionários, colabora com os experimentos científicos da adorada pesquisadora e, à noite, “livre para investigar”, mergulha na biblioteca da universidade.

Depois de reagir mal à desilusão amorosa (quando se comporta como um Louis C. K. orangotango), é transferido para o zoológico. Em plena adolescência, vivenciando uma terrível dor de cotovelo, vizinho de um gorila chamado Fidel (o qual vive solitário, “com pneus, troncos e tubos de concreto”, em “uma ilhota só para ele” e é a “única voz que se levantou contra a dominação”), desinteressado da companheira de jaula (Kinder Ovo), ele passa a escapar à noite do cativeiro para observar a cidade lá fora e seus habitantes. E, claro, como bom orangotango marxista, após atentar para a própria condição de oprimido, começa a arquitetar seus planos revolucionários.

Partindo de uma premissa com ecos kafkianos (como esquecer o célebre conto Um Relatório para uma Academia?) e da óbvia, mas extremamente funcional, inversão de perspectiva, Marcelo Rubens Paiva antropomorfiza o orangotango para melhor animalizar os seres humanos e expor, pela voz de um primata ilustrado – coisa cada vez mais rara, não é mesmo? –, a mecânica de uma sociedade adoecida. Dada a bagagem cultural do protagonista, o jogo narrativo ironicamente pressupõe um nivelamento pelo alto, e o “animal dócil e escravizado” cede espaço ao “animal político”.

Óbvio que, como nos mostra a história, o cultivo da revolução é de certa forma análogo à criação de corvos, os quais, conforme o ditado, cedo ou tarde nos furam os olhos. Por sorte, O Orangotango Marxista não omite ou se esconde dos paradoxos que desde sempre alimentam a nossa animalidade política, com o bônus de, ao final, explicitar a noção de que estamos presos ao eterno embate de teses e antíteses, e a síntese, qualquer que seja, não passa de um malogro, de uma quimera em cujo nome ainda correm rios de sangue.