“Nós”

Entrevista cedida a Bruna Marquezan para a revista NÓS.

Schiele

Seu primeiro romance, Hoje está um dia morto, tem como pano de fundo o suicídio, tema esse que também aparece em Terra de casas vazias. Em algumas de suas entrevistas, você atrela essa abordagem ao grande número de suicídios cometidos em Silvânia durante sua adolescência. Em sua opinião, como o contexto histórico e social de Silvânia desde o acidente com o Césio 137 na capital influenciou nesses altos índices?
Não me lembro de alguma vez ter feito relação entre o índice de suicídios em Silvânia e o acidente com o Césio 137. Inclusive, na época do acidente, eu e minha família residíamos no sul do Pará (vivemos por lá entre 1986 e 1988) e acompanhamos tudo à distância. Hoje, passados todos esses anos, e como saí de Silvânia há tempos, não creio que consiga tecer, com um mínimo de consequência, quaisquer paralelos entre os eventuais suicídios de conhecidos meus e a tragédia ocorrida na capital. Quando me lembro dos suicídios, penso em cada situação individual, específica, e para mim isso já é mais do que suficiente. Vou ficar lhes devendo essa.

Hoje está um dia morto traz um interessante jogo de ligação entre a literatura e o cinema. Graeme Turner vê o cinema como prática social, e isso podemos observar com clareza dentro da representação de alguns eventos em específico, como por exemplo as guerras e os conflitos políticos retratados no cinema hollywoodiano. Afrânio Coutinho caracteriza a literatura como uma “transfiguração do real”, retransmitida pela língua, configurando-se, dessa forma, como parte da vida humana e como meio através do qual se tem contato com essa vida. De que maneira a sua obra mescla a “prática social” e a “transfiguração do real” nas perspectivas do cinema e da literatura?
Considero bem ingênuas e filosoficamente débeis as noções de Turner e Coutinho. Dizer que algo é uma “prática social” não quer dizer muito acerca desse algo, seja ele qual for. Dadas a tessitura e a estruturação de nossa sociedade, por exemplo, qualquer coisa pode ser encarada como uma “prática social”. Lembro-me, então, da ‘boutade’ de Godard, para quem “filmar é um ato político”. Qualquer ato humano é político na medida em que estamos inapelavelmente inseridos em um contexto tal, inclusive (ou, dependendo das circunstâncias, sobretudo) quando prescindimos de agir. Coutinho, por sua vez, investe nessa bobagem de ecos pseudoheideggerianos contaminada por uma mitificação adolescentemente academicista. Ora, ao abrir os olhos e observar uma determinada coisa, já “transfiguramos o real”, na medida em que processamos esse “real” (seja lá o que ele for, pois ninguém sabe de fato) pelo nosso aparelho perceptivo. Nem entrarei aqui numa elucubração de cunho epistemológico; a fisiologia da coisa já me parece suficiente para o que procuro ressaltar. Afirmar a literatura como uma “transfiguração do real” mediante a linguagem, e que nos coloca em “contato” com a vida, é algo que beira a tautologia. E que diabo é esse “real” a que ele se refere? Estou diante de uma acepção de fato realista da existência (seja lá o que isso for) ou tudo é uma construção ideal, tornada factível somente na e pela linguagem? A inconsequência filosófica disso chega a ser risível, e meu trabalho não tem absolutamente nada a ver com essas perquirições autoenganosas. Antes, penso na “força silenciosa do possível” enunciada por Heidegger, longe dessa distinção falaciosa e linguageira de Coutinho, que confunde presença e representação só para negar tanto uma quanto a outra, por mais que recorra à muleta “transfigurativa”.

Como a sua obra reflete os impactos da globalização sobre a sociedade?
Não penso nesses termos. Obviamente, sei o que é viver no mundo de hoje, hiperconectado etc., e quando situo uma história nos dias atuais, levo em conta tais e tais coisas. Mas, em termos essenciais (se me permite usar esse palavrão), os seres humanos que crio são, grosso modo, os mesmos que circulam por aí desde sempre: mais ou menos pobres, muito ou pouco indefesos, às vezes bons, às vezes maus etc. No meu modo de ver, as “teorias” acerca dos “modos de produção” não mascaram o óbvio: independentemente do “sistema” em vigor, somos essencialmente a mesmíssima porcaria maravilhosa, por assim dizer.

Em suas obras, encontramos várias referências a elementos bíblicos e à figura de Deus, como se nota no capítulo cinco do livro Hoje está um dia morto, intitulado “O cu de Deus”. Isso seria fruto de alguma crença particular sua?
Tenho uma crença profunda em D’us (favor manter a grafia assim), próxima do judaísmo e distante anos-luz de quaisquer cristianismos. Já o Deus que irrompe no “Dia Morto” é uma caricatura da divindade que o catolicismo e o kardecismo tentaram me empurrar goela adentro, quando eu era moleque. D’us, felizmente, é ou me parece ser outra Coisa. E o sentimento que experimento d’Ele é algo tão íntimo que sequer me dou ao trabalho de tentar explicar o que é. Até porque não preciso.

O que Goiás e Silvânia, muito presentes em suas obras, representam para você?
É o lugar onde cresci e no qual passei por experiências extremamente importantes para a minha formação e para o que me tornei depois, para o bem e para o mal. Experiências boas, ruins, intensas, reveladoras, traumáticas, horríveis, bonitas. Experiências de todo tipo. Logo, é natural que tais experiências ainda marquem os meus escritos, ainda que reimaginadas, reinventadas, ficcionalizadas e às vezes completamente transformadas, pois não faço o que se convencionou chamar de “autoficção”.

Pra você, qual o sentido da vida e da literatura?
Para mim, o sentido da vida consiste em cultivar o que me é caro e próximo. No meu caso, o amor que sinto por minha esposa e por uns poucos e bons amigos. Cultivando isso, cultivo a mim mesmo e procuro ser correto e justo, a despeito da minha precária humanidade. O sentido da literatura reside no outro; se e quando eu o alcanço, ocorre uma troca e estamos bem.

De acordo com Friedrich Novalis, estamos sempre voltando para casa. Tal qual algumas de suas personagens, você se vê retornando para Silvânia num futuro distante?
Não, porque nunca me senti em casa em Silvânia. Minha casa é onde estou agora, com quem estou agora. Demorei bastante para chegar até aqui, a um custo imensurável, mas cheguei. Muitos não têm essa sorte. Eu mesmo cheguei a pensar que não teria. Agora, na medida em que não considero Silvânia a minha “casa”, você pode se perguntar por que a sigo abordando em meus escritos. Bom, porque também somos o caminho que fazemos e os lugares pelos quais passamos, por piores que eles às vezes nos pareçam. Não nego quem sou nem por onde e pelo que passei. Mas, e isso lhe afirmo com toda a certeza, jamais conseguiria escrever a esse respeito, da forma como escrevo, se não tivesse adquirido tal consciência e tomado essa distância.

Sua graduação em Filosofia influenciou ou foi influenciada por seus livros?
Nem uma coisa, nem outra. As disciplinas filosóficas que estudo com maior atenção são bem específicas e nada têm a ver com literatura. É uma ocupação que mantenho à parte.

Considerando o conjunto de sua obra, com qual personagem você mais se identifica? Por quê?
Eu me identifiquei com personagens diferentes em momentos distintos da minha vida. Por exemplo, já experimentei bem de perto a ânsia autoanuladora da Fabiana do Dia Morto ou a falsa quietude do Aureliano de Terra de casas vazias. Hoje, sinto-me próximo do Lázaro de Abaixo do Paraíso. A exemplo dele, pressinto a tragédia se instaurando ao redor, mas sei que a única coisa a fazer é continuar aqui no meu canto, cultivando a minha roça.

A seu ver, para criar literatura, o autor precisa se despir de si mesmo no sentido de criar uma obra que não seja autobiográfica, ou fingir a própria dor sentida (Fernando Pessoa) ou, ainda, deve se pessoalizar nas personagens e eventos narrados?
Não posso falar pelo “autor” enquanto categoria, até porque cada um é e trabalha de uma determinada maneira. No meu caso, é inescapável que algumas das coisas que vivenciei e alguns dos lugares pelos quais passei apareçam de algum modo nas minhas histórias. Às vezes, parto da minha experiência, mas o esforço é sempre o de imaginar e criar um universo ficcional. Até porque jamais me exporia ou exporia pessoas que são ou foram próximas de mim, e respeito demais a imaginação e a invenção para conspurcá-las com fatos da minha vida particular. Aliás, eu me respeito demais para fazer esse tipo de coisa. Evito e desprezo esse tipo de exposição.

Seu processo de criação literária ocorre mais por uma inspiração ou pela disciplina de escrever? Há algum tipo de ritual?
Disciplina. Eu me sento à mesa e escrevo. A única mania é que as primeiras versões dos meus romances são sempre escritas à mão, só depois é que passo ao computador. Mas isso não quer dizer nada. Como disse, é só uma mania. “Inspiração” é uma maneira sacal de se referir à disposição: há dias em que estou mais e há dias em que estou menos disposto a trabalhar, assim como qualquer outra pessoa, em qualquer outra área, seja um advogado, um encanador ou um veterinário. E, assim como qualquer outra pessoa, em qualquer outra área, estando ou não disposto, eu me entrego ao trabalho e, assim, há dias em que produzo mais e/ou melhor e há dias em que produzo menos e/ou pior. E há dias em que não faço nada, embora sejam relativamente raros (e eu me sinta culpado depois).