Fantasmas de setembro

Resenha publicada em 02.09.2017 no Estadão.

Luis Martinez/LuisMMolina//Getty Images

“Nada neste momento fatídico é o que parece ser”, lemos a certa altura de O Último Grito, romance do octogenário norte-americano Thomas Pynchon. Situado em Nova York no começo do século XXI, antes, durante e logo após o Onze de Setembro, o livro é um belo exemplar da prosa movediça do autor de obras-primas como O Arco-Íris da Gravidade e Mason & Dixon.

Fiel ao seu estilo, em que alta e baixa culturas se esbarram o tempo inteiro e a paranoia é o alimento que os personagens mastigam e engolem todos os dias no café da manhã, Pynchon investe em uma narrativa que usa terrorismo e realidade virtual como ganchos para explicitar o quão pouco confiável é o que se apresenta aos nossos olhos, estando ou não conectados. Como nada é o que parece ser, o leitor é convidado a participar dessa “experiência de se perder construtivamente”: a história avança, veloz e intrincada, mas o que importa não é tanto a trama detetivesca, mas os elementos fantasmagóricos, próprios de uma realidade fugidia, que vemos nas entrelinhas do discurso, nas ironias e digressões que pululam em suas páginas.

 De certo modo, há duas protagonistas em O Último Grito. A primeira delas é Nova York. A cidade é devassada pelas andanças dos personagens e depois eviscerada feito um organismo vivo pelos atentados terroristas de 2001, os quais são revisitados sob um ponto de vista doméstico, mas jamais domesticado ou óbvio, no capítulo 29. Após “cerca de trinta e seis horas de estupefação, recomeçam os ódios étnicos tradicionais, com a ferocidade tóxica de sempre”.

A outra protagonista é Maxine Tarnow, uma investigadora de fraudes que, fazendo um favor para um amigo, é sugada para um labirinto tipicamente pynchoniano. No centro (ou nas sombras) da intriga, está um sujeito chamado Gabriel Ice e sua empresa de segurança informacional, hashslingrz (assim mesmo, em minúsculas), que não só sobreviveu ao estouro da bolha da internet como tem inchado, abocanhando a concorrência, e isso graças a relações obscuras, quiçá criminosas, com governos, entidades e figuras suspeitas, inclusive do Oriente Médio.

Em sua investigação, Maxine esbarra em uma fauna das mais coloridas: hackers, bandidos russos, espiões a serviço sabe-se lá de quem e por aí afora. Conspirações e interesses se acotovelam, gente aparece morta aqui e ali, e ao menos duas reaproximações (entre Maxine e o marido, e entre uma mãe e sua filha) têm lugar. A protagonista também mergulha em um tour de realidade virtual chamado DeepArcher, “um outro labirinto” localizado na deep web e descrito como “um caminho invisível que se autorrecodifica” – descrição que serve muito bem ao próprio romance.

Como sempre, Pynchon costura com habilidade os desdobramentos da trama, chamando a atenção sobretudo para o que deixa inexplicado, obscuro e inconcluso. Atente-se, por exemplo, para a cena doméstica na qual a insegurança de uma mãe em relação aos filhos (que decidem ir sozinhos à escola) remete àquele receio generalizado, típico de quem vive em circunstâncias nas quais o terror se insere no próprio tecido da realidade, confundindo-se com ela a ponto de transformá-la em outra coisa, que ainda não sabemos o que é. É graças a passagens assim que a narrativa rocambolesca de O Último Grito acaba se revelando uma sofrida reflexão acerca dos rumos do mundo em meio à violência galopante e ao crescente obscurantismo deste século.