A parte do fogo

Originalmente publicado em 10.10.2014,
lá no Pelé Calado.

Heleno, quando tinha motivos para sorrir

Heleno de Freitas, quando tinha motivo para sorrir

Cariocas.
Se eu pudesse escolher um time carioca pelo qual torcer, escolheria o Botafogo. Acho o Flamengo, como todo fenômeno de massa, tedioso (embora tenha em sua história um dos melhores que vi jogar, Zico). O Fluminense, com seus rebaixamentos contraídos e não pagos, gols de barriga, chicanas jurídicas e parreirices variadas, que me perdoem os tricolores, nunca teve o meu respeito. Tenho algum carinho pelo Vasco da Gama, e é uma pena que o clube tenha sido estrangulado por uma sucessão de gestores ineptos (para dizer pouco), coisa que também se aplica ao Botafogo, o mais encrencado financeiramente entre eles.

Batalha campal.
Anteontem, assisti a Botafogo x Palmeiras. Por morar em Perdizes, a dez minutos do Palestra, ou melhor, Allianz Parque, achava que, correndo à janela e berrando PORCOOOO a cada gol palmeirense, ganharia algum desconto no IPTU. Não é o caso, evidentemente, mas tenho acompanhado com desgosto a luta do time, em pleno ano do centenário, contra outro rebaixamento. Seu Angelo, o barbeiro, primeira amizade que fiz no bairro tão logo me mudei, não merece passar por isso de novo, e sequer tem idade ou saúde para tanto. Mas, do outro lado, em situação até pior, estava o Botafogo. Eu não sabia por quem torcer. O empate, é claro, seria péssimo para ambos.

O jogo foi uma batalha campal desesperada e desesperadora, cujo nível técnico explicou, didaticamente, por que os times se encontram em tal situação. Vi partidas melhores na Javari, em dias de chuva torrencial. O Palmeiras venceu por um a zero, e teve duas chances claríssimas de ampliar o placar e dar algum sossego ao coração do seu Angelo nos minutos finais, mas é óbvio que não o fez.

Glorioso.
No Campeonato Carioca de 1910, que venceu, o Botafogo marcou 66 gols e ganhou o apelido de Glorioso. Ao longo dos meus trinta e quatro anos de vida (completo 35 em janeiro; aceito camisa do Botafogo como presente), tenho a impressão de não ter visto (ou tomado ciência) de tantos gols do alvinegro, muito embora Túlio (159 gols, se a conta estiver certa) e Dodô (90 Gols Bonitos™) me desmintam facilmente.

Seja como for, no decorrer de sua história, o time amargou longos períodos de seca (1912-30, 1968-1989) e não vence uma competição nacional desde 1995. Foi rebaixado no Brasileirão em 2002, voltou à primeira divisão no ano seguinte e por muito pouco não voltou cair em 2004, ano do centenário.

Salários atrasados, dívidas enormes, estádios vazios (é como se o botafoguense preferisse ficar em casa, em quiet desperation) e, de novo, a ameaça do rebaixamento. Não há nada de glorioso no atual momento do Botafogo. Mas, vendo o time em campo, entregue a uma tarefa complicadíssima, talvez impossível, pensei na cena final de Heleno, em que o protagonista, alquebrado e doente, concentra o que ainda resta em si de vontade para manter-se de pé e chutar uma bola, a derradeira. Não vemos o chute, mas é impossível conceber que, mesmo tendo queimado tão rapidamente, o grande Heleno de Freitas não tenha, ali, convertido o que seria o 269º gol de sua carreira.

Caráter.
Diz-se que arquibancada forma caráter. Eu diria que derrotas formam caráter. Aprender a suportá-las, compreendê-las e mesmo acolhê-las é o que pode fazer de um mero torcedor um torcedor fiel e justo.

No Brasil, há o hábito nojento de jamais aceitar uma derrota (a culpa é do juiz, do bandeirinha, do gramado, do técnico, de um ou outro jogador, do clima, do horóscopo, de Deus etc.). Mas, no botafoguense, talvez em função daquele peso histórico excruciante, as secas intermináveis, percebo não uma resignação, mas uma resiliência silenciosa. Acho que isso denota caráter.

O botafoguense sabe que a noite é longa, e que ela se arrasta.

Fogo.
Heleno, mesmo doente, equilibrando-se como pode, mantém os olhos fixos na bola. Ele mesmo não sabe se conseguirá alcançá-la, quanto mais chutá-la, mas lhe parece impossível, pecaminoso, concentrar-se em qualquer outra coisa. Há que se manter de pé enquanto for possível. Há que se buscar a bola, capturá-la, de novo e de novo. Há que se deixar arder mais do que o próprio fogo.