Cidade pesadelo

Texto publicado n’O Popular em 08.08.2017.

2666

Há um conto do escritor norte-americano Dashiell Hammett (1894-1961) em que a própria cidade parece ser um organismo corrupto e assassino. Salvo engano (não estou com o livro à mão), o título é “Cidade Pesadelo” e pode ser encontrado em A Mulher do Bandido e Outras Histórias, lançada no Brasil pela editora L&PM, com tradução de Heloísa Seixas, Alexandre Raposo e Roberto Muggiati.

No conto, os protagonistas lutam não só contra o chefão criminoso que controla o lugarejo, mas também contra o próprio lugarejo, que lança suas sombras sobre eles e a todo momento insiste em expô-los e jogá-los ao encontro dos inimigos. É como se a cidade estivesse viva, e não valesse muita coisa. Ou, por outra, é como se o humano, no que tem de pior, contaminasse até mesmo as ruas e os edifícios, cada mísero pedaço de concreto, cada parede do lugar.

Algo dessa atmosfera ecoa no belo filme Ajuste Final, talvez o mais subestimado dos irmãos Joel e Ethan Coen. Como eles próprios fizeram questão de ressaltar em entrevistas à época do lançamento (nas quais também citavam a obra de outro grande escritor, James M. Cain), há a ideia de uma cidade inteiramente tomada pelo crime, em que a violência não só grassa livremente como, de certa forma, define o que é o ambiente. Não me lembro de ninguém que não seja corrupto no filme dos Coen. Todos respiram o mesmo ar.

Anos atrás, quando li o romance 2666 (traduzido por Eduardo Brandão e lançado no Brasil pela Companhia das Letras), do chileno Roberto Bolaño (1953-2003), ocorreu-me pensar na cidade mexicana de Santa Teresa — versão ficcionalizada de Ciudad Juárez —  como análoga ao vilarejo criado por Hammett. Creio que a comparação se sustenta.

Dominada por narcotraficantes, Ciudad Juárez já chegou a contabilizar mais de três mil assassinatos por ano. O número diminuiu de uns tempos para cá, mas ela ainda é uma das cinquenta cidades mais violentas do planeta, inclusive pela onda de feminicídios que a assola pelo menos desde 1993. Centenas de mulheres, a maioria pobre, com idades entre 15 e 25 anos, torturadas, estupradas e assassinadas cotidianamente. Dadas a extensão dos crimes e a aparente insolubilidade da maioria deles, é lógico supor que boa parte da cidade e suas instituições estão envolvidas na calamidade, direta ou indiretamente, por omissão. Além dos assassinos de fato, é como se o próprio lugar se voltasse contra uma parcela de seus viventes, não por acaso os mais frágeis e expostos à brutalidade.

Roubando as palavras de um personagem do romance de Bolaño, os feminicídios em Santa Teresa/Ciudad Juárez e a sua narrativa seriam “um retrato do mundo industrial no Terceiro Mundo”. “Todos estão metidos”, diz um personagem. Olhando por esse lado, não custa lembrar dos “industriosos” narcotraficantes e de como eles se apropriam do tecido urbano. Mais uma vez, é aquilo que o conto de Hammett me sugeriu, de como os homens contaminam e corrompem não só outros seres humanos, mas também as ruas e os edifícios pelos quais circulam, roubam, estupram e matam.

Para concluir, transcrevo o que outro personagem de 2666 diz sobre a prisão da cidade: “Mais viva que um edifício de apartamentos, por exemplo. Muito mais viva. Parece, não se espante com o que vou dizer, com uma mulher esquartejada. Esquartejada, mas ainda viva. E dentro dessa mulher vivem os presos”. Se os presos vivem dentro de uma mulher esquartejada, onde estão os demais citadinos? Claro que ao redor dela. Esquartejados, e nem sempre vivos.