Futuro(s)

Texto publicado n’O Popular em 25.07.2017.

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Volta e meia nos deparamos com o uso do termo “datado” para criticar uma obra de arte, seja romance, livro, tela, filme, composição musical etc. Para o mal ou para o bem, toda obra de arte é “datada”. Em um romance do século XVIII, alguém viaja a cavalo para levar uma mensagem de A para B. Em um romance contemporâneo, A e B trocam e-mails ou mensagens via celular. Claro, muitas vezes, quando utiliza o termo, o crítico se refere a elementos menos superficiais, que dizem respeito à estrutura da obra, à forma como ela se apresenta, a certos vícios estéticos ou mesmo ideológicos que por acaso deixe transparecer. Mas creio que seja possível recorrer ao termo para tecer ainda um outro tipo de reflexão, e é o que tentarei fazer aqui usando o audiovisual como gancho.
Pois todo e qualquer filme é datado, e a beleza do cinema reside aí mesmo, na capacidade (e/ou possibilidade, pois há filmes bons e ruins, “datamentos” bons e ruins) contingenciadora assumida por essa forma de arte da maneira mais evidente e imediata, posto que salta aos olhos. Há filmes que são “futuros”, como diria Júlio Bressane (ou Jean-Claude Bernardet teria dito sobre ele). Alguns filmes de Stanley Kubrick, por exemplo, são “futuros”.
Anos atrás, numa retrospectiva na Mostra de São Paulo, revi O Iluminado linda e perfeitamente projetado. A reflexão alçada por ele sobre como a nossa cultura quase sempre redunda, resvala ou naufraga na violência mais gratuita, reflexão, aliás, ensaiada desde 2001: Uma Odisseia no Espaço, é coisa que se irmana com a discussão metafísica sempre e ainda ao nosso alcance — vide a série televisiva True Detective. Eu me refiro ao Mal, e não temo escrever com iniciais maiúsculas (D’us esteja).
2001, aliás, pressupõe um diálogo fantasmagórico com as nossas origens e, sobretudo, com um futuro possível (não em termos factuais, mas metafísicos), no qual a carga brutalista intrínseca à nossa espécie nos atraiçoa em pleno vácuo (HAL, óbvio), obrigando o sobrevivente, último e primeiro homem, a um salto ou lançamento que pode ou não resultar num Übermensch, pode ou não ser “boa” coisa (do nosso reles ponto de vista) (e, de novo, D’us esteja).
O “datamento” é um dado da compaginação do cinema à imanência. O filme exige que lhe tomemos o pulso. Movimenta-se, transpira. É um organismo vivo, não raro monstruoso, colocado à nossa frente, reclamando a nossa presença, exigindo um co-pertencimento, apelando para a nossa disposição ao toque ou mesmo à violência sensorial.
Não deixa de ser curioso que uma arte com tais e tais características se permita, aqui e ali (Tarkovski, o Kubrick de 2001, Sokurov), uma outra espécie de lançamento, outras formas de aproximação, ou a proposta de um co-pertencimento de outra ordem. A carnalidade do cinema é, assim e eventualmente, transfigurada. O organismo, não mais monstruoso, dirige-se a nós obliquamente. O filme nos desencarna. Exige não mais o toque, mas única e exclusivamente o olhar. Tal transcendência audiovisual, se e quando possível, diz respeito a esse enevoamento infenso ao toque. É uma paisagem tão interiorizada nela própria (e, portanto, em nós) que se e nos aproxima de uma pobre — porque ainda tão nossa — ideia de D’us.
O desfecho da primeira temporada de True Detective é uma paisagem assim. O Mal está lá fora. Por um momento, algo de D’us é despejado em nossos olhos. Ver isso ainda é uma experiência contingenciadora, mas é como se não mais estivéssemos montados na seta do Tempo e, sim, corrêssemos ao lado dela e conseguíssemos enxergá-la inteira. Restamos, portanto e momentaneamente, num “futuro”.