Um espaço de transição

Trecho de O Último Grito, de Thomas Pynchon.

Luis Martinez/LuisMMolina//Getty Images

Nenhuma notícia de Horst até agora. Ela tenta não se preocupar, acreditar no que ela mesma disse aos meninos, mas está preocupada, sim. Aquela noite, bem tarde, depois que os meninos vão se deitar, ela fica acordada diante da televisão, cochilando, sendo acordada por microssonhos de alguém entrando no apartamento, cochilando outra vez.
Em algum momento daquela noite, Maxine sonha que é um camundongo que está correndo solto entre as paredes de um enorme prédio que, ela sabe, é os Estados Unidos, se aventurando em cozinhas e despensas à procura de comida, batalhando porém livre, e em plena madrugada ela se sente atraída pelo que identifica como uma espécie de ratoeira humanitária, no entanto não consegue resistir à isca, não coisas tradicionais como creme de amendoim ou queijo, e sim alguma comida mais sofisticada, patê ou trufas, talvez, e no instante em que ela entra naquela pequena estrutura sedutora, o peso de seu corpo é suficiente para acionar a mola de uma porta que se fecha, sem fazer muito barulho, e não pode mais ser aberta. Ela se vê dentro de um espaço de vários andares, alguma espécie de evento, uma reunião, talvez uma festa, cheia de rostos desconhecidos, camundongos como ela, mas não mais exatamente, ou apenas, camundongos. Ela se dá conta de que aquele lugar é um espaço de transição entre a liberdade no ambiente silvestre e algum outro meio no qual, um por um, todos eles serão lançados, e que aquilo só pode ser análogo à morte e ao além-morte.
E tem uma vontade desesperada de acordar. E depois que acorda, de estar em outro lugar, até mesmo em um falso paraíso de geeks como o DeepArcher.
Maxine se levanta da cama, suando, vai ao quarto dos meninos, que estão roncando, segue até a cozinha, fica parada olhando para a geladeira como se para uma televisão capaz de lhe dizer alguma coisa que ela precisa saber. Ouve ruídos vindo do quarto de hóspedes. Tentando não nutrir esperanças, não hiperventilar, entra no quarto na ponta dos pés e é mesmo Horst, sim, roncando na frente do canal BioPiX, o único canal de televisão hoje que não está apresentando a cobertura completa da catástrofe, como se fosse a coisa mais natural do mundo estar vivo e estar em casa.

Companhia das Letras. Tradução: Paulo Henriques Britto. Resenha em breve.