Moneta, VA

Em Moneta, no estado norte-americano da Virginia, um atirador matou uma repórter, Alison Parker, de 24 anos, e um cinegrafista, Adam Ward, de 27, e registrou tudo em um vídeo que depois postou nas redes sociais.

Foi em 26 de agosto de 2015.

O atirador se chamava Vester Lee Flanagan (a.k.a. Bryce Williams) e era ex-funcionário da mesma emissora em que as vítimas trabalhavam. Perseguido pela polícia, Flanagan se deu um tiro. Morreu no hospital.

Cansamos de assistir ao vídeo, rep(r)isar aquelas mortes.

Vendo-o, lembrei de uma passagem do romance Submundo, de Don DeLillo, intitulada “Elegia para a mão esquerda”. A edição de que disponho é da Cia. das Letras e a tradução, de Paulo Henriques Britto. A passagem envolve um assassino em série que sai por aí dirigindo e atirando em outros motoristas, os carros em movimento. Um dos assassinatos é flagrado por uma criança com uma filmadora, dentro de um terceiro carro.

“Não é apenas mais um vídeo de assassinato”, escreve DeLillo. “É um assassinato documentado por uma criança que julgava estar fazendo uma coisa simples e quem sabe até um pouco esperta, captar a imagem de um homem num carro.”

O carro dirigido pelo atirador se aproxima daquele enquadrado pela criança.

“É claro que, se tivesse feito uma panorâmica para mostrar outro carro, o carro exato no momento exato, ela teria captado a imagem do assassino dando o tiro.”

Há um encontro, uma confluência de olhares e intenções.

“A aleatoriedade do encontro. A vítima, o assassino e a criança com sua câmara. Energias aleatórias que se aproximam de um ponto comum. Há aqui outra coisa que fala diretamente a você, que diz coisas terríveis sobre forças além do seu controle, linhas de interseção que atravessam a história, a lógica e todas as outras camadas razoáveis da expectativa humana.”

E:

“Lá vem o tiro. Ele é atingido na cabeça, e a câmara reage, a criança reage — há um sacolejo súbito mas ela continua gravando, há uma reação solidária, uma reação nervosa, o coração dela bate mais depressa mas ela continua com a câmara apontada para o homem que desliza em direção à porta (…).”

E DeLillo vai direto na jugular:

“Você fica pensando se esse tipo de crime não se tornou mais fácil quando se disseminou um meio de registrar um evento e o exibir imediatamente, sem um intervalo neutro, um espaço e um tempo equilibradores. A exibição imediata intensifica e comprime o evento. Desperta a necessidade de repeti-lo.”

No caso do atirador em Moneta, além do imediatismo (vídeo, redes sociais, ausência completa de “um intervalo neutro, um espaço e um tempo equilibradores”), há um elemento mais aterrador: é o próprio assassino quem faz questão de registrar o ato hediondo. Não temos, como no romance de DeLillo, uma terceira parte, uma testemunha gravando o evento — ainda que inadvertidamente — para a massa expectante, isto é, para nós.

“Não é apenas mais um vídeo de assassinato.”

Não mesmo. Em Moneta, no evento real, as crianças curiosas, que mal se contém de ansiedade diante do que se desenrola, somos nós. É como se o assassino tivesse cortado qualquer (inter)mediação além da própria câmera. Ele está conosco do começo ao fim.

Câmera subjetiva: vemos o que ele vê, fazemos o que ele faz.

E há um momento, um longo momento, quase tão assustador quanto os tiros em si: é quando Flanagan se aproxima das futuras vítimas e se queda perto, muito perto delas, sem que ninguém perceba. O assassino aguarda, e nós com ele. Então, aponta(mos) a arma e atira(mos).

E não há mais nada a ser dito.

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Versão estendida de um texto publicado n’O Popular em 24 de janeiro último.