Zoo literário

Texto publicado hoje pelo jornal O Popular.

“Pode-se contar nos dedos de uma mão só o número de gente no mundo editorial que ainda respira”, diz o escritor Guy Ableman, narrador e protagonista de O Grande Zoológico, romance de Howard Jacobson lançado pela Bertrand Brasil no ano passado, com tradução de Regina Lyra. Ele tem alguns motivos para dizer uma coisa dessas: os livros que publicou desaparecem das prateleiras, seu editor cometeu suicídio, leitores são cada vez mais raros (e os poucos que permanecem não lhe têm muito apreço) e seu agente não parece lá muito animado com o que o futuro reserva para a cultura livresca. No entender de Guy, a literatura morreu (ou quase) e só nos resta observar a “beleza voluptuosa” de sua putrefação. Contudo, e essa é “a parte estranha”, ainda lhe resta “um desejo intenso” de escrever, e ele tem a ver não com algum sentimento altivo e edificante, mas, sim, com a paixão que nutre por sua mulher, Vanessa, e pela mãe dela, Poppy, ambas (segundo ele) ruivas e estonteantes.

O britânico Jacobson, vencedor do Man Booker Prize por A Questão Finkler, afirmou que nunca se divertiu tanto ao escrever um romance. Tal prazer transparece em cada página de O Grande Zoológico. Seu narrador é, como toda primeira pessoa digna de nota, muito pouco confiável, mas expõe suas agruras, afeições e seus preconceitos com tamanha vivacidade que é impossível não gostar dele – mesmo quando acena com a possibilidade de dormir com sogra para, depois, escrever um romance a respeito. O agente não acha que seja uma boa ideia, literária e realisticamente falando (embora não esconda uma tremenda curiosidade por Poppy), mas Guy ainda se debaterá a respeito, enquanto nos conta sobre como conheceu “suas mulheres”, discorre sobre o fim dos tempos e da literatura (mais ou menos nessa ordem), fala sobre a família (carinhosamente apelidada de “os Dementievas”) e, ao final, demonstra ter aprendido uma ou duas coisas não sobre o mundo – quem se importa com o mundo, não é mesmo? –, mas a respeito de si próprio.

A essa altura, cabe ressaltar que o narrador de Jacobson é cínico, desesperado e não raro patético, mas a prosa do autor nada tem de leviana. Embora, à primeira vista, sua ironia pareça fácil, os custos que ela acarreta e as recompensas que traz jamais o são. Em meio ao sarcasmo, e também a partir dele, o leitor encontra algumas verdades e, por mais démodé que seja falar nesses termos, é o tipo de coisa que eleva a sátira para um outro patamar. Como exemplo disso, podemos citar a forma como o surto coletivo (que cedo ou tarde anima todas as famílias) é colocada na narrativa. Por mais engraçada que seja a maneira como os “Dementievas” (pai, mãe e irmão de Guy) se voltam para o judaísmo a certa altura, é também dolorosa a constatação do protagonista acerca de sua própria e solitária condição. De repente, as palavras “cascudas e cínicas” que soltava aos quatro ventos ganham peso, e ele tem de se virar com isso sozinho.

Assim, o tom sardônico vai adquirindo novas tonalidades, novas camadas, e, muito embora jamais deixe de ser engraçado, o romance só diz realmente a que veio quando seu narrador precisa lidar, para valer, com a solidão que, de uma forma ou de outra, sempre alimentou. Como se vê, O Grande Zoológico prepara uma série de armadilhas para o leitor, uma melhor que a outra, e o que mais impressiona é o modo como demonstra o quanto podemos estar errados a respeito de nós mesmos e dos outros, e o quão importante é aceitar isso e recomeçar.