Duas aproximações

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1.
O núcleo de Elefante (2003) é o massacre numa high school. A data e o local não são precisados, de tal forma que o filme se refere a todos e a nenhum desses eventos. Muito de sua força está na estruturação elíptica: ela contorce o tempo dolorosamente ao redor daquele núcleo sanguinário — dois alunos armados até os dentes, atirando nos demais — e nos abandona ali; é algo que aconteceu, está acontecendo, continuará a acontecer.

Gus Van Sant nos aproxima de alguns personagens (incluindo a dupla de assassinos) ao mesmo tempo em que evita quaisquer simplificações e psicologismos. Ao posicionar a câmera, acompanhando as pessoas pelos ambientes da escola (longos travellings cuja composição remonta aos de Stanley Kubrick, mas também aos de jogos como GTA e similares), e também pela escolha dos recortes, a própria organização dos retalhos que formam o longa, o cineasta parece nos dizer da impossibilidade de dar conta da(s) tragédia(s) como um todo, de “explicá-la(s)” ou coisa parecida. Assim, o filme funciona num outro nível, distante do sensacionalismo, por um lado, e do sentimentalismo, por outro.

Elefante está mais para um trabalho arqueológico que desvelasse ao espectador uns restos de pinturas rupestres, nos escombros de uma caverna recém-implodida ou em constante, eterna implosão (aconteceu, acontece, acontecerá). O jogo que estabelece é ao mesmo tempo naturalista — o uso de atores não-profissionais; o esforço para imergir no ambiente — e antinaturalista — vide o extremo rigor com que dilata o tempo para melhor alquebrá-lo, como se encalacrasse as pessoas naquelas horas brutais, num labirinto sem saída, fadadas à eterna repetição da violência, e a edição de som a realçar o estranhamento e a atmosfera de pesadelo. Elefante é, ademais, um filme que se sustenta em paradoxos: como é possível que seja, ao mesmo tempo, tão radical e tão discreto? Ele nos pede silêncio, não histeria. E, em vez de se quedar à distância, exige que nos aproximemos, até onde for possível.

2.
O Conformista (1971) é lugar onde Bernardo Bertolucci “assassina” um de seus “pais”, Jean-Luc Godard (o outro é Pier Paolo Pasolini, de quem se livrara em Prima della Rivoluzioni). Os travellings laterais, o antinaturalismo de algumas cenas e diálogos, o uso contraintuitivo e chistoso da música em algumas passagens, são todos elementos gordardianos. Mas, claro, o filme vai muito além disso.

É uma adaptação livre do romance homônimo de Alberto Moravia. O tom “decadente” foi visto com reservas à época do lançamento; esperava-se algo “menos artístico” e mais incisivo. Por sorte, Bertolucci optou por fazer cinema (grande cinema) em vez de fazer a revolução. Assim, pôde dar estofo a um personagem cuja vaziez é tão absurda que transcende o maniqueísmo ideológico, um crianção de família (mil&)quatrocentona obcecado pela ideia de levar uma vida “normal”. Como estamos na Itália fascista, uma vida “normal” inclui um casamento com uma burguesa cretina e um estar ao dispôr da ditadura de Mussolini: em sua viagem de lua-de-mel, ele se reaproxima de um ex-professor, esquerdista, agora exilado em Paris e a quem é incumbido de matar.

Acho curioso o modo como Bertolucci teatraliza a encenação, até certo ponto. É uma estilização que não chega aos extremos da artificialidade porque o diretor sabe muito bem onde instalar o seu ponto de ruptura, a saber, na violência que é a argamassa do regime, primeira e última instâncias de um ordenamento maníaco que visa a obliteração de qualquer indivíduo tido como subversivo. O filme flerta com o excesso e o patético, seja no modo como reconstitui eventos passados da vida do personagem principal, seja no distanciamento com que certas passagens são concebidas (a visita ao pai louco; a ida ao ministério; a missão dada num bordel), mas, quando a brutalidade irrompe, Bertolucci não tergiversa: o assassinato não é um acidente, mas o símbolo de um permanente estado de exceção e resultado direto da irreflexão do indivíduo “normal”, obcecado em anular o (suposto) crime pregresso com os crimes presentes (estes, crimes de fato).

Depois, num epílogo situado nas ruínas do fascismo, restam as sombras, como se o status quo invertesse a alegoria platônica e nos acorrentasse de vez no interior da caverna, indignos que somos da claridade exterior e de qualquer coisa que se assemelhe com a busca pela verdade. Mas não é como se o fascismo se esfacelasse. Em vez disso, ela alcança uma interiorização, mesclando-se com os ossos dos indivíduos, com os alicerces do lugar político onde, cegos, ainda pisamos uns nos outros.

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Uma versão menor deste texto foi publicada ontem pelo jornal O Popular.