Na planície desértica

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Há quase três anos, escrevi um texto emocionado sobre O Homem de Aço, de Zack Snyder, e a forma como as histórias em quadrinhos foram imprescindíveis para me viabilizar em um momento delicado da minha vida. Desde então, a minha admiração por aquele filme (que devo ter revisto umas seis ou sete vezes) não diminuiu. Hoje, fui ao cinema assistir à sua sequência, Batman vs. Superman – A Origem da Justiça, e saí tão impressionado quanto da outra vez.

A primeira coisa que me agrada nesses filmes é a maneira como Snyder assume determinados riscos. Ele não tenta reinventar a roda, mas transpõe para a tela e intensifica detalhes e sensações que os leitores das melhores histórias desses personagens identificam de imediato como, digamos, desestabilizadores. Por exemplo: a extrema inadequação sofrida por Superman dados a sua própria natureza alienígena e o status de semideus perante os cada vez mais assustados seres humanos. Ou ainda: o preço que a violência cotidiana cobra de alguém como Batman, cuja vocação nasce de um crime hediondo e cujos métodos, ele mesmo admite, são também criminosos.

Noutras palavras, Snyder trabalha muito bem com as sombras que envolvem os personagens, bem como as ruínas (literais e figurativas) que vão se amontoando ao seu redor. Parafraseando algo que Michael Corleone diz à mãe no segundo Godfather, os heróis correm o risco de perder o mundo na medida em que tentam salvá-lo. Assim, a amargura que movia o primeiro filme é intensificada nessa sequência; o custo das escolhas de Kal-El e Bruce Wayne ribomba na tela desde o começo e não os deixará em paz mesmo depois que tudo terminar, se e quando.

Snyder não apenas retoma a história, mas reconta parte dela a partir dos olhos de Wayne, ressaltando o insuportável custo humano de alguns eventos que tiveram lugar no clímax de O Homem de Aço. Ao mesmo tempo, quando se detém no modus operandi de Batman, deixa de lado quaisquer sutilezas e entrega a representação mais sombria e desarvorada desse personagem que eu já vi no cinema. A cena em que ele estoura um traficante de mulheres, quase que inteiramente montada a partir dos olhos apavorados dos outros (vítimas, policiais, criminoso), é um primor de composição. Antes, o prólogo (por meio do qual revisitamos a origem do homem-morcego) consegue ser melhor do que toda a horrenda trilogia dirigida por Christopher Nolan — o que, convenhamos, não é difícil.

Nolan sequer consegue alinhavar uma sequência de ação (e é incrível como a tediosa cena de perseguição em The Dark Knight é, de certo modo, revisitada e tornada impactante por Snyder), quanto mais construir uma real atmosfera de perigo, inadequação, fantasmagoria ou perda — elementos que perpassam Batman vs. Superman do começo ao fim. As sequências de sonho, por exemplo, são tão inteligentemente costuradas quanto os flashbacks no filme anterior; elas estabelecem não só os estados psicológicos dos personagens, mas ressaltam tudo aquilo que lhes falta (a presença paterna) ou ameaça (o futuro à Mad Max que Wayne visita num pesadelo).

Num certo sentido, gosto de pensar na realidade imaginada por esses dois novos filmes como um desvio sombrio, alimentado por apocalipses diversos que já me apavoraram nos quadrinhos (O Cavaleiro das Trevas, A Morte do Superman). É o filme de super-heróis possível num mundo (tanto o nosso quanto o deles) que já parece ter assumido um status pós-apocalíptico, magnificamente ilustrado pela tela de ecos miltonianos que Lex Luthor faz questão de inverter. E pouco importa se a perdição ou a salvação (e aqui as duas coisas se confundem) chega das profundezas ou das alturas, pois nos atinge no mesmo lugar: a planície desértica em que somos imolados.