Sarmento

Resenha publicada em 18.12.2015 no Estadão.

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Uma boa maneira de apresentar o humor delirante de Associação Robert Walser para Sósias Anônimos, de Tadeu Sarmento, é a partir da história (provavelmente falsa, e o livro está cheio de mentiras dentro de mentiras) de um personagem, o mentor da associação que dá título ao romance: Hussein é assim chamado porque teria sido um dos vários dublês do filho mais velho de Saddam, Udai. Certo dia, o ditador iraquiano ordena ao filho que vá a Basra “levantar a moral das tropas”. Lá, Udai sofre um atentado e perde um dos braços. Consequentemente, os dublês são coagidos a arrancar o membro respectivo, “obrigados a fazer esse sacrifício para se adequarem à nova condição do duplo”. Feitas as amputações, descobre-se que Udai estava na verdade em um cassino na Suíça, e que a pessoa que sofreu o atentado era um dos sósias.

Passagens como essa pipocam nas páginas do livro, muito bem costurado pelo pernambucano Sarmento em duas tramas que correm paralelas: a primeira diz respeito à tal associação e é narrada em primeira pessoa por um sósia de Robert Walser; a segunda (que pode muito bem ser um livro dentro do livro) se passa no começo dos anos 1960, em uma cidadezinha no interior do Paraguai chamada Nueva Königsberg, onde os moradores (nazistas foragidos com o patrocínio da Igreja Católica e sob a proteção do ditador Alfredo Stroessner) são sósias de Immanuel Kant, adotando, inclusive, os hábitos do célebre filósofo prussiano. A forma como as tramas são finalmente ligadas é um primor de imaginação, com o romance se debruçando sobre si mesmo e se revelando um labirinto de espelhos no qual a própria estrutura da fabulação reflete o jogo de duplos e impostores estabelecido desde o começo.

Sarmento também devassa a fixação contemporânea pelas celebridades. Em princípio, os membros da associação estariam ali “para reaprender a ser” eles mesmos, “isto é: ninguém”, almejando “a tranquilidade fria do anonimato”, cuja liberdade “quebra em pedaços a aura de promessas que, às vezes, se forma em torno das pessoas”. No entanto, tal projeto é pervertido, e o mentor deles diz a certa altura: “Porque nós somos tudo aquilo o que todos gostariam de ser: somos outra pessoa, cada um de nós, e isto que nós somos é o ápice de toda cultura moderna”. Não por acaso, no momento em que essa mudança de paradigma se torna patente, é que um crime tem lugar às portas da associação. E o crime ainda encerra uma tremenda – e hilariante – inversão de papéis.

Para terminar, ressalte-se que Associação Robert Walser para Sósias Anônimos foi justamente agraciado com o Prêmio Pernambuco de Literatura. Aguardemos outra “comédia triste sobre literatura e desaparecimento”, como o autor tão bem definiu esse seu romance de estreia.