Carpintaria narrativa

Resenha publicada em 23.10.2015 no Estadão.

moyan

O escritor chinês Mo Yan (em português, “Não fale”; pseudônimo de Guan Moye) recebeu muitas críticas quando, em 2012, recebeu o Nobel de Literatura. O poeta Ye Du comparou seu conterrâneo a uma meretriz. Salman Rushdie chamou-o de fantoche do governo chinês, pois não assinara uma petição pela soltura do crítico literário Liu Xiaobo, condenado à prisão como signatário da Carta 08 (manifesto pela democratização da China) e agraciado com o Nobel da Paz em 2010 (que não foi receber por estar na cadeia). Assim, é ótimo que seja lançado no Brasil um romance como As Rãs, cuja estupenda carpintaria narrativa justifica a premiação do autor e mostra que ele não é uma mera marionete do Partidão.

No primeiro capítulo, já nos deparamos com o narrador, Wan Perna (que também atende por Corre Corre e Girino), e alguns colegas de escola se deliciando, em meados dos anos 1960, com uma iguaria: carvão. “Mas é gostoso mesmo, tio”, diz alguém. A política do “grande timoneiro” Mao causava fome generalizada, e Mo Yan aborda o passado traumático em tom coloquial e bem-humorado, sem, contudo, aliviar o choque. É procedimento-padrão em todo o romance.

As Rãs devassa sete décadas da história chinesa e é estruturado em cinco partes. As quatro primeiras são cartas escritas por Girino, ex-militar e agora aspirante a dramaturgo, e endereçadas a um escritor japonês, o qual considera um mentor. A quinta parte é uma peça escrita por Girino, que reelabora, em chave onírica e delirante, algumas das histórias contadas nas quatrocentas páginas anteriores. No centro, estão uma tia do narrador, Wan Coração, e a política de controle de natalidade levada a cabo pela ditadura maoista.

A ambiguidade da tia é muito bem explorada por Mo Yan. Médica de boa ascendência e comunista de carteirinha, teria um brilhante futuro nos altos escalões não fosse pelo noivo, piloto da aeronáutica, virar um desertor. Trabalhando em sua remota terra natal, no nordeste do país, moderniza as técnicas de parto e salva muitas vidas. Mas, quando o controle de natalidade é instituído, em 1965, ela incorpora sem hesitar as novas diretrizes. Cada casal só pode ter uma criança; caso seja menina, uma nova tentativa é permitida após oito anos. A tia se ocupa, então, de abortar crianças “ilegais” e fazer vasectomia nos homens que já cumpriram a cota.

A inflexibilidade da tia se choca com a vida de Girino quando a mulher dele, Wang Renmei, tendo já uma menina, ignora a lei e engravida de novo. Os desdobramentos são trágicos. “Será que alguém que leva o senso de responsabilidade a esse ponto pode ser considerado gente? Aí já virou um deus ou um demônio”, diz o pai de Girino.

Aqui e ali, o romance adquire um tom sombrio, seja ao descrever uma “assembleia de denúncia” da Revolução Cultural, cuja insânia irrompe sem aviso, seja ao narrar as consequências não raro desastrosas do controle de natalidade. Em meio a isso, os personagens centrais tateiam em busca de expiação e redenção. Mas tudo cobra seu preço, o que é explicitado na peça que encerra o livro. “Cada criança é única e insubstituível”, lemos um pouco antes. “O sangue que manchou as mãos jamais será lavado? A alma atormentada pela culpa jamais encontrará alívio?”

Ressalte-se, por fim, o significado do título As Rãs (no original, Wa). Como diz uma personagem: “Por que a palavra ‘wa’ pode significar tanto ‘rã’ como ‘bebê’?”. Por que o choro de um bebê que saiu do ventre da mãe é parecido com o coaxo de uma rã? Por que os bonecos de barro da nossa terra muitas vezes têm uma rã no colo? E por que a deusa criadora da humanidade se chama Nü Wa?”. Ao colocar de pé uma narrativa tão forte, na qual se entrelaçam morte e nascimento, sanidade e loucura, fanatismo e libertação, Mo Yan não leva em consideração as críticas à sua persona e traz ao proscênio uma obra de arte..