Da impossibilidade do vazio

O princípio básico da física cartesiana é o da constância da quantidade de movimento. Descartes entendia por matéria apenas aquilo que é extenso (res extensa). O mundo físico é, assim, inteiramente constituído por corpos. A realidade física é absolutamente homogênea. Não há espaços vazios (estes seriam ocupados por corpos invisíveis aos nossos olhos, ou ignorados pelos nossos sentidos pouco confiáveis). Não há ausência de matéria no mundo físico. Espaço e extensão são sinônimos, e as coisas não extensas são aquelas próprias do mundo abstrato, do pensamento. O mundo material é organizado conforme a movimentação dos corpos que o constituem. No entanto, como é possível que haja movimento uma vez que inexiste o vazio? Noutras palavras, o que legitima o supracitado Princípio da Constância da Quantidade de Movimento? Em que ele se baseia? A economia conceitual cartesiana entende o movimento como algo localizado, uma mudança de lugar, aquilo que faz com que os corpos passem de um lugar a outro. Ele escreve n’O Mundo ou Tratado da Luz (p. 29-31): “Considero que há uma infinidade de diferentes movimentos que duram perpetuamente no mundo. E, após ter observado os maiores, que constituem os dias, os meses e os anos, noto que os vapores da terra não cessam de subir em direção às nuvens e de lá descer, que o ar está sempre agitado pelos ventos, que o mar jamais está em repouso, que as fontes e os rios fluem sem cessar, que os mais firmes edifícios por fim entram em decadência, que as plantas e os animais não fazem mais que crescer ou se corromper, em suma, que não há nada, em lugar algum, que não se altere”. Há uma eterna constância de movimentos. Algo aparentemente para de se mover aqui, mas outra coisa principia a se mover acolá. Há, além da constância, uma concomitância, pois um determinado corpo não se move daqui para algum espaço vazio, mas, não havendo vazio, ao se reposicionar, ele empurra outros corpos para alhures. E, reitere-se, no mundo físico, o movimento é constante e permanente, pois “não há nada, em lugar algum, que não se altere”. E é esse movimento que, em sendo a matéria divisível e mais ou menos concentrada aqui ou ali, explica (por exemplo) as diferentes formas e consistências dos diversos corpos. Descartes repousa sua física na metafísica, como também o faz Leibniz (grosso modo, o divórcio entre uma coisa e outra só ocorrerá com Newton e o advento da física meramente descritiva, conforme percebido por Kant). E ele o faz porque intenta fundamentar a necessidade de algo (o citado Princípio) que, em si, não é logicamente necessário. O tempo, em Descartes, é introduzido por D’us quando Ele dispõe o movimento. O tempo é uma sucessão de instantes assinalada pela constância do movimento numa realidade física em que a própria expressão “espaço vazio” é contraditória, pois, se há espaço, não há vazio. Tudo está preenchido, o tempo todo. Tudo é extensão.