Narcisistas

Parafraseando Montale, o narcisismo pode até nos divertir, mas não nos comove jamais. Penso, claro, no péssimo artigo de Knausgård sobre Breivik, publicado na Piauí deste mês. A estupefação cega que o anima trafega pelas obviedades habituais: McVeigh, Arendt, o sentimentalismo torpe de programa televisivo dominical. Quando, após transcrever e descontextualizar um trecho de Eichmann em Jerusalém, Knausgård afirma que o ser humano é naturalmente infenso à violência, eu ri alto. E, à medida que se torna clara a sua inapetência para alcançar uma reflexão, qualquer que seja, sobre o massacre, é previsível a forma como apela a essa pornografia do coração que tanto comove os cérebros concretados. O saldo final é um resmungo malcriado de alguém que se sente traído pelo mundo (pois Breivik é “um de nós”, como é possível?!), como se o mundo lhe devesse satisfações.

Outra vítima dessa doença é Zambra. Por exemplo, o derradeiro conto (?) de Meus documentos é de uma cafajestagem sem tamanho. Está ali o truquezinho metaficcional manjado como que desculpando a incapacidade do autor de explorar um tema pesadíssimo (pedofilia, parricídio — este, de mentirinha, como quase tudo, afinal). Não é sequer um jogo de ocultamento e desocultamento, conforme a narrativa se desenrola, a fim de lhe conservar e depois sublinhar a força, pois não há força, e, sim, frouxidão, uma preguiça que explicita o abismo entre autor e tema. Não há vivência, e tampouco interesse real pelo que é narrado. Zambra é vencido pelo próprio narcisismo, que o impede até mesmo de perceber o negrume intrínseco àquela violência. Esta é barateada pelos vícios de um mau escritor, que fracassa diante de qualquer coisa que ultrapasse o estreito horizonte de suas viseiras apertadas. Ou seja, diante de quase tudo.

O trato com a violência não é para amadores, até porque exige um ressituar-se no mundo. A violência implode o narcisismo, pois é (também) constituída por uma experiência radical do outro. Mas Zambra sequer se aproxima de sua personagem brutalizada, assim como Knausgård mal enxerga os cadáveres empilhados por Breivik. Os ouvidos do primeiro estão voltados para um autoentranhamento que jamais resulta em estranhamento. E os olhos do segundo foram vazados pelos mesmos fatos que, agora, procura em vão distinguir no breu absoluto. Em vez de ser um ponto de partida, a pobreza de ambos é um sintoma. A simplicidade só redunda em sofisticação nas obras dos grandes escritores (Kawabatta, Adriana Lisboa), até porque ali é um sinal de generosidade. Nos maus, ela é um engodo, um modus operandi divorciado de um modus vivendi, ou, melhor dizendo, e de novo recorro a Montale, um modus moriendi indeciso entre o suicídio e a sobrevivência.