Artesão da memória

Resenha publicada em 17.10.2014 no Estadão.

 

A certa altura de Minha Vida sem Banho, novo romance do paulistano Bernardo Ajzenberg, lemos (e peço desculpas pela citação um tanto longa): “Penso muito na paciência e na perseverança dos maratonistas ou na calma e autoconfiança dos nadadores de longos percursos, aquelas pessoas que avançam devagar numa piscina, indo e voltando, sempre cientes de que chegarão ao seu destino, mantendo a velocidade e o ritmo das braçadas, sabendo que cumprirão aquilo que tinham se proposto fazer”. Creio que essa descrição também vale para o estilo do autor. Por mais que esse não seja um romance longo (189 páginas que se permitem ler com extrema fluidez), ele, contudo, aprofunda-se em temas tão díspares quanto o ambientalismo, o mais recente período ditatorial brasileiro e o holocausto.

Em sua estrutura, alternam-se três vozes: Célio, funcionário de um “instituto” que luta pela preservação do meio ambiente; Débora, namorada de Célio, em viagem para Manaus; e Wiesen, amigo dos pais de Célio, Waisman e Flora, sobre os quais discorrerá a fim de esclarecer, até onde for possível, alguns segredos inerentes à sua longa relação.

O mote da obra é a decisão tomada por Célio de não tomar mais banho, e que, embora intempestiva, não é gratuita: além das razões ambientais, explanadas com cuidado, há outras, não exatamente mensuráveis, mas que dizem respeito à sua vida, descrita como “um riacho franzino que passava sem graça por um terreno de mata descolorida”. Ele e Débora se desentenderam antes que ela embarcasse para Manaus. Agora, à distância, ela investe, por e-mails e cartas, num furioso e desesperado diálogo de surdos, buscando compreendê-lo e a si própria.

O terço narrado por Wiesen diz respeito, primeiro, ao seu passado e ao de Waisman como militantes contrários à ditadura militar brasileira, e depois, ou paralelamente, no que inclui Flora, ao triângulo amoroso que eles mantiveram por décadas. Waisman é um personagem particularmente conflituoso, e em sua constituição (ou também como elemento desagregador) está o fato de que seu pai era um refugiado austríaco, judeu, que escapara por pouco do genocídio nazista. Desiludido com os ideais revolucionários que nortearam um bom pedaço de sua vida, Waisman se entrega a uma extensa pesquisa sobre o holocausto, como “se estivesse preparando a defesa de uma tese acadêmica”. Flora, colocada entre os dois amigos, é uma espécie de centro irradiador de perturbação; diagnosticada com câncer, opta por não fazer nenhum tratamento, entregando-se à doença e à morte.

Ajzenberg articula muito bem essas diversas vertentes narrativas, com a paciência e a perseverança dos maratonistas, indo e voltando no tempo. Ele jamais se perde nas ramificações, mas trabalha para que elas convirjam no desfecho, quando, inclusive, a própria estrutura do romance é, por assim dizer, justificada. Assim, mesmo relatos paralelos, como aqueles sobre o pai de Waisman ou acerca de um jornalista que também se colocou em rota de colisão com a ditadura, Koichiro, são passagens de enorme força narrativa, capazes de iluminar momentos históricos distintos e tão sombrios quanto essenciais para compreendermos melhor os personagens. Noutras palavras, é o cuidado artesanal do autor que impede o romance de se dispersar, garantindo sua coesão e seu impacto.

Articulado dessa forma, pela convergência das vozes que o constituem, pelo alinhavar de experiências e vidas diferentes entre si, mas complementares na medida em que se iluminam umas às outras, Minha Vida sem Banho reinveste a memória e a imaginação da força que, às vezes, parecem perder; elas são, afinal, os ingredientes da melhor literatura e, consequentemente, o antídoto contra a ensurdecedora derrisão da barbárie.