Teatro

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O programa estava perto do fim quando a entrevistadora perguntou à atriz se a atriz usava salto ou rasteirinha e a atriz disse que preferia rasteirinha, mal conseguia andar de salto, era uma tortura, e além disso é bom manter os pés bem perto do chão, não é mesmo?, e elas riram um pouco. Em seguida, a entrevistadora perguntou se ela malhava e a atriz disse que sim, com seu personal, é impossível não malhar, você precisa estar bem consigo mesma e confortável com seu corpo. Foi a última pergunta, e a entrevistadora pediu à atriz que deixasse uma frase ou pensamento ou citação, e a atriz deixou e repetiu quando a entrevistadora pediu, porque era muito profundo e as pessoas tinham que ouvir direitinho e guardar aquilo muito bem guardado na lembrança. A gravação terminou e a atriz agradeceu à entrevistadora e à produtora e ao resto da equipe e todos agradeceram à atriz. Na saída da emissora, a atriz aceitou posar para um selfie com a recepcionista e agradeceu pelo carinho. O taxista olhou pelo retrovisor e a reconheceu e fez alguma piada sobre o beijo gay (ele usou a expressão “beijo lésbico”) protagonizado pela atriz no último capítulo da novela, tanto homem querendo beijar vocês duas e vocês duas lá se grampeando, hein? A atriz era muito boa atriz e conseguiu rir com o taxista, que depois disse não ser muito noveleiro, o comentário morrendo à míngua, entre o banco dianteiro e o traseiro, e a atriz pensou na entrevistadora perguntando a ela sobre os pais, como eles reagiram ao beijo lésbico (ela usou a expressão “beijo gay”), e a atriz respondeu sorrindo que muito bem, eles não têm problema com isso, meu irmão mais novo é gay e todos ceamos juntos no Natal, eu, meus pais, meu irmão e o companheiro dele, e a entrevistadora disse que lindo, que exemplo, que coisa. A atriz pagou pela corrida, agradeceu ao taxista, que lamentou o fato de a câmera do celular estar estragada, e desceu. O hall estava vazio. A atriz entrou sozinha no elevador. Sobre a mesa de centro da sala, o roteiro de um filme cujas filmagens começariam dali a oito dias, no litoral do Rio Grande do Norte. Ela viajaria para lá na manhã seguinte. A atriz descalçou as rasteirinhas, foi à cozinha e se serviu de um pouco d’água. A entrevistadora também perguntou sobre banhos, se ela curtia uma ducha bem gelada no meio do inverno, e ela mentiu que sim, claro, é revigorante, um ótimo jeito de começar o dia. A atriz deitou-se no sofá da sala, ligou a televisão e começou a zapear. Um Jesus Cristo escandinavo era pregado na cruz. Um Adolf Hitler rechonchudo dava um chilique. Um repórter falava ao vivo do CT do Palmeiras. Billy gritava destruir legal, destruir legal, destruir legal, destruir legal. Matt Damon perseguia alguém e era perseguido pelas ruas de Moscou. Um professor universitário discorria sobre o conflito em Gaza para um âncora de expressão abestalhada. O celular vibrou dentro da bolsa que ela deixara sobre uma das poltronas. A atriz não se levantou para atender. Diane Keaton contava para Al Pacino que não tinha perdido coisa nenhuma, tinha era abortado o filho deles. Ela apertou o mute, de tal modo que o tapa de Pacino na cara de Diane não foi ouvido, alcançou o roteiro, abriu na página que deixara marcada e começou a ler ou, como ela disse à entrevistadora, quando estou em casa, gosto de relaxar e estudar os roteiros, de tal modo que a atriz estava ali, em sua casa, relaxada, estudando o roteiro do filme. O filho de um pescador e a menina de família rica. Algumas cenas de sexo. Na praia, por exemplo. Na areia. Os seios vistos de relance. Já fizera na areia? Assim, na vida real? Não, nunca fizera. Podiam ser gays. O filho gay de um pescador e o menino gay de família rica. Mas daí ela não teria o papel, pois interpretaria a menina (heterossexual) de família rica. O telefone voltou a vibrar. Certa vez ela vira a entrevistadora em uma cantina nos Jardins, a entrevistadora ainda não a conhecia, uma atriz iniciante jantando com o produtor e a diretora de seu primeiro filme, ele ansioso para impressioná-las e ela (a atriz) ansiosa para impressioná-lo. A entrevistadora estava com um sujeito alto e muito jovem, e o produtor disse maldosamente que não é o filho dela, não, eu conheço o filho dela, estudei com ele. Ela pediu espaguete à marinara e comeu tudo, depois foi ao banheiro e, enquanto mijava, ouviu a entrevistadora entrar falando ao celular, irritada com a assessora de alguém. A atriz esperou que a entrevistadora desligasse, soltasse uns palavrões e saísse. Quando voltou à mesa, recusou a sobremesa e agradeceu ao produtor pelo jantar e pela chance oferecida. O produtor disse que ela era a pessoa certa para o papel, com o que a diretora concordou. O celular continuava vibrando dentro da bolsa. Ela largou o roteiro aberto sobre a mesa de centro, alcançou a bolsa e resgatou o celular. Era o diretor do novo filme. As filmagens adiadas. O ator que interpretaria o filho do pescador tinha sofrido um acidente nas dunas do Cabo de São Roque. Parecia sério, parecia grave. A atriz lamentou e perguntou se havia algo que ela pudesse fazer. O diretor disse que não e que a manteria informada. A atriz recolocou o telefone na bolsa e voltou a se deitar no sofá. O ator era jovem e bonito e meses antes fora ao mesmo programa e a entrevistadora lhe perguntara sobre como ele mantinha a forma e coisas do tipo, mas não pedira a ele que repetisse a frase ou pensamento ou citação ao final. Sempre correram boatos sobre a suposta homossexualidade do ator e ele começou a aparecer em festas acompanhado por uma outra atriz, com quem ainda passou um réveillon em Angra antes que deixassem de ser vistos juntos, ambos se recusando a comentar o que teria acontecido. A atriz conhecia a outra atriz desde os tempos em que interpretaram papéis secundários em uma novelinha adolescente, as duas em início de carreira, e não hesitou em perguntar sobre o namoro. A outra atriz encolheu os ombros e disse que ele era um sujeito bacana, mas que o lance não tinha funcionado, e foi tudo, mas a outra atriz não era tão boa atriz e a atriz ficou com a impressão de uma impostura, de um teatrinho reles, ou talvez estivesse ficando por demais desconfiada, contaminada por um meio no qual tudo às vezes parecia se resumir a imposturas, a teatrinhos reles. Você está animada para trabalhar com ele?, perguntou a entrevistadora, referindo-se ao ator, ao que a atriz respondeu que é claro que sim, ele é um ator de muita intensidade, muito sério, está há um mês no nordeste, convivendo com pescadores, aprendendo, pesquisando, trabalhando na composição do personagem, e ao dizer isso ela se lembrou das histórias que corriam à boca pequena, festinhas, porres, essas coisas. E agora um acidente nas dunas. Um acidente que parecia sério, que parecia grave. A atriz respirou fundo e se levantou, calçou as rasteirinhas, deixou o apartamento. O elevador vazio. Lá embaixo, perguntou ao porteiro sobre as correspondências, chegou alguma coisa pra mim? O porteiro olhou para ela e sorriu e disse que não, senhora, hoje não tem nada. Ela sorriu de volta e rumou para o elevador, os braços cruzados; a atriz sentia um pouco de frio.