A antipornografia de Jelinek

Resenha publicada em 23.08.2013 no Estadão.

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O romance Desejo, de Elfriede Jelinek, é um dos mais polêmicos da escritora austríaca, agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura em 2004. Quando lançado na Alemanha, em 1989, e a exemplo de outros trabalhos da autora, a reação crítica foi controversa, para dizer o mínimo. Muitos até hoje consideram sua ficção gratuita, doentia ou obscena. Ao conceder-lhe a máxima honraria literária, contudo, a Academia Sueca saudou o “fluxo musical de vozes e contravozes em romances e peças que, com extraordinário zelo linguístico, revelam o absurdo dos clichês sociais e seu poder subjugador”.

Vendo por esse lado, Desejo foi muito bem definido por alguns como um romance antipornográfico: o tom é explícito e não raro escatológico, mas as descrições estão ali para nos lançar a anos-luz de uma qualquer zona de conforto. Elas causam repulsa, não excitação. Não há gratuidade.

A protagonista é uma mulher de meia-idade chamada Gerti. Ela é casada com Hermann, diretor de uma fábrica de papel, e mãe de um garoto. É abusada diariamente pelo marido, descrito como alguém “inescapável como a morte”, que está “sempre pronto para arrancar-lhe o coração, colocá-lo sobre a língua como uma hóstia e mostrar que também o restante do corpo está preparado para o senhor: é o que espera de sua mulher”. A única linguagem conhecida por ele é aquela “que o animal conhece”. As descrições abrasivas falam de opressão; ele “usa e suja sua mulher como o papel de fábrica”.

Com sua prosa febril, Jelinek não distingue o mecanismo machista, reificador, de dominação sexual, da engrenagem fabril que, também gerenciada por Hermann, mastiga os empregados. Nesse sentido, a economia sexual reflete a economia capitalista (o que não equivale a dizer que o capitalismo os tornou assim, por favor), ambas parecem expressões de um mesmo apetite violador, impossível de ser preenchido a contento.

Perambulando pelas imediações de um resort de esqui, bêbada e perturbada, Gerti conhece Michael, um jovem estudante, e entrega-se a ele. Quando volta a procurá-lo, no entanto, ele não só a descarta em favor de uma mulher mais jovem como, auxiliado por um bando de colegas, violenta Gerti a céu aberto. O desfecho do romance, horrendamente familiar, traz ainda outro crime, o pior de todos. Como se trabalhasse em uma devastação em andamento, Jelinek compõe a narrativa em um crescendo brutal. As notas finais são ensurdecedoras.

A imagem de um lugar, interior e/ou exterior, em pleno processo de devastação serve bem à leitura. Se o desenvolvimento do romance é, conforme dissemos, o lento e laborioso desenrolar de uma série de violências, o crime que tem lugar em suas páginas finais atira Desejo para além do discurso meramente anticapitalista ou feminista. Nós nos deparamos com o mal. O ser humano, homem ou mulher, irrompe carregado tanto daquele vazio inexorável referido há pouco quanto de uma qualidade metastática, que a tudo transforma em terra arrasada, os outros e a si próprio.

Grosso modo, correndo o risco de simplificar em demasia o que é proposto, a vida tornou-se uma espécie de doença e o sexo, tal e qual exercitado pelos personagens de Desejo, transformou-se em uma epidemia que resulta em doença e morte, jamais em satisfação.

Em tempos nos quais a literatura soft-porn (ou nem isso) de Cinquenta Tons de Cinza e produtos similares reiteram a vulgaridade dos clichês e o machismo mal disfarçado, Jelinek articula uma reação violentíssima, valendo-se de uma prosa impecável para desnudar o estado degenerativo de nossas relações.