Crônica de devastações

Resenha publicada em 13.06.2014 no Estadão.

housingdevelopment

Desde que estreou na literatura com No bosque da memória, agraciado com um prestigioso Edgar Award em 2008, Tana French vem se dedicando a esquadrinhar a fictícia Divisão de Homicídios da polícia de Dublin. Ela o faz alternando os narradores-protagonistas de suas longas e minuciosas narrativas. Porto Inseguro é seu quarto romance, o detetive da vez é o veterano Mickey Kennedy e o crime reverbera de forma perturbadora a crise econômica que assola a Europa e, particularmente, a Irlanda.

O título original é Broken Harbour e diz respeito a uma vila litorânea, outrora povoada por pescadores, transformada em um pretenso condomínio de luxo: Ocean View, Brianstown. Com a quebradeira imobiliária, o lugar se transformou numa desolada cidadezinha-fantasma: “Havia uns poucos carros estacionados, mas a maior parte das entradas de carro estava vazia (…). Dava para se olhar diretamente através de três de cada quatro casas, para ver janelas sem cortinas e nesgas de céu cinzento”.

O crime investigado por Kennedy e seu parceiro neófito, Richie Curran, no tal condomínio é um triplo assassinato: o pai e o casal de filhos pequenos foram mortos em casa, e a mãe, ferida gravemente. As crianças foram sufocadas em suas camas; os adultos, esfaqueados na cozinha. As circunstâncias que envolvem a tragédia são agravadas pelo fato de que, meses antes, o pai havia perdido o emprego e vinha se dedicando, com obsessão crescente, a caçar um animal que estaria pelo sótão e mesmo pelas paredes da casa. Desnecessário dizer que as finanças familiares estavam esgarçadas. Além disso, um amigo de outra época estaria usando uma das inúmeras casas inacabadas e/ou abandonadas do condomínio como base para espioná-los.

O passado diz muito das escolhas feitas por Kennedy no decorrer da investigação. Muitos anos antes, ele, os pais e as irmãs costumavam passar as férias em Broken Harbour. A mãe era uma mulher devastada pela depressão. Ao final de um daqueles verões, quando Kennedy estava com 15 anos, “ela estava mais feliz do que nunca. Só fui saber o motivo depois. Ela esperou até a última noite das nossas férias para entrar mar adentro”. O suicídio da mãe ecoa sobretudo na irmã caçula, Dina, que sofre da mesma doença e, agora, não reage bem à investigação na qual Kennedy trabalha.

Perturbado pelo trauma causado pela desaparição da mãe, os surtos da irmã e o crime com o qual tem de lidar, o protagonista precisa se movimentar por um cenário arruinado, em que vivos e mortos só lhe trazem perguntas difíceis e respostas impossíveis, se e quando trazem. Com isso, Porto Inseguro transcende a mera investigação (ainda que esta seja descrita nos mínimos detalhes) para se colocar como uma crônica de devastações presentes e pretéritas.

No desfecho, o consolo e a resolução relativos ou possíveis (dadas as circunstâncias) alcançados por Kennedy guardam, ao menos, o sentido original de Broken Harbour: o nome viria de breacadh, “o romper do dia”. Como sabemos desde as páginas iniciais, o lugar não existe mais. Exceto, é claro, interiormente.