Sobre a raiva

Revisado em 1º.12.2019.

::: Muito já se escreveu sobre Touro Indomável, tido como um dos melhores filmes da história. Essa “redenção católica de um homem animalizado” (Vincent Canby disse isso, salvo engano) continua perfeita em sua aspereza quase insuportável. Revendo-o após alguns anos, o que mais uma vez me impressionou foi a extrema raiva que o anima. Eu ainda me reconheço nela, e isso é meio assustador.

::: “Eu me dei conta de que não tinha mais nada a fazer”, disse Martin Scorsese sobre o momento em que, internado em um hospital após sofrer um colapso, viciado em cocaína, esgotado, Robert DeNiro foi visitá-lo com a autobiografia do ex-boxeador Jake LaMotta (1921-2017), querendo saber se aquele poderia ser o próximo filme deles. Se a autodestruição é uma forma de arte, Scorsese e LaMotta foram, cada qual a seu modo e em seus respectivos mundos, grandes artistas.

::: Touro Indomável é o registro brutalista de alguém devorando os outros e a si mesmo. Ao final, quando esse alguém se vê sozinho, ocorre uma iluminação. Não chega a ser uma epifania, mas a crua constatação de que nada mais restou. “Eu não sou um animal”, ele diz várias e várias vezes, e chora depois de estourar as mãos socando a parede da cela em que o jogaram. É o primeiro momento em que ele, de fato, pode dizer isso. E é o primeiro momento em que nós, espectadores, podemos dizer: “Bom, talvez não”.

::: Philip Roth escreveu certa vez (em A Marca Humana) que a raiva pode ser vivificante. Talvez. Mas, em geral, ela não permite que se veja as coisas com clareza. E há uma névoa que se espessa em Touro Indomável. Um mundo cada vez mais retorcido, incompreensível, absurdo. Não é possível confiar em ninguém. O homem está sozinho. Todos querem tirar alguma coisa dele. Todos mentem. Todos merecem apanhar.

::: E, ao mesmo tempo, há um dolorosíssimo abastardamento. LaMotta não se sente parte de nada, seja do bairro, seja da família. Quando visita o pai, depara-se com uma casa vazia. A fotografia dele com o irmão não significa muito. Ninguém se isola tanto impunemente. A culpa alimenta a raiva. “Fiz algumas coisas ruins na minha vida”, ele diz após uma luta que entregou ridiculamente para, no futuro, com a mãozinha da máfia, ter uma chance de lutar pelo cinturão. O problema (um dentre tantos) é que ele não sabe como responder a isso, à culpa e à raiva que o mordem, exceto mordendo de volta. Chega uma hora em que os dentes não aguentam mais. Chega uma hora em que não resta mais ninguém para morder. E, acima de tudo, chega uma hora em que o sujeito percebe que passou todo aquele tempo mordendo (sobretudo) a si mesmo.

::: Em tal contexto, as conquistas são esvaziadas. Quando LaMotta conquista o título, a música de Mascagni desaparece e Scorsese nos deixa com os sons mecânicos dos flashes. É um triunfo oco. Antes da luta, ele estapeou a esposa e berrou com o irmão no quarto do hotel. O mundo inteiro é um ringue. A raiva não é direcionada, mas extravasada o tempo todo, e das piores maneiras. Quando o mundo inteiro é um ringue, não há perspectiva que possibilite saborear, do lado de fora, o que é conquistado lá dentro. A luta é interminável.

::: Duvido que, ao final, LaMotta seja um homem “melhor”. É, talvez, alguém mais consciente do material extremamente inflamável de que é constituído. A raiva ainda está ali, mas também a noção (evito pensar em “consciência”) de como ela pode ser arrasadora, sobretudo quando acesa sob os próprios pés. A vida como esse eterno caminhar sobre brasas. Sugar Ray Robinson nunca conseguiu derrubá-lo. Não foi preciso.

::: Tanto que LaMotta, um gordo patético, dublê de comediante, falido, caminhando atrás do irmão que espancara anos antes, implorando por perdão, é qualquer coisa, menos um “novo homem”. Ele sempre permanecerá nas trevas, mas talvez haja algum consolo em saber disso. Scorsese é honesto demais para oferecer qualquer outra coisa. Ele conhece LaMotta e a si próprio. Ele conhece a raiva.

::: No filme, o catolicismo escorre por toda parte. Está no homem que se deixa massacrar como forma (quimérica, veja só) de expiação. Ocorre que a expiação nunca vem quando queremos, e na forma como queremos. É algo um pouco mais complicado. A dor, por si só, não significa muito. LaMotta ainda precisou percorrer um longo e tortuoso caminho até aquela cela para perceber isso. Precisou estar verdadeiramente só. A dor, ali, não é infligida por outrem, mas por ele mesmo. A raiva adquire seu contorno real, e ele pode enxergá-la. Não há mais ninguém ali. Está nele. Ele teve de afastar todo mundo para se enxergar.

::: E é uma espécie de redenção, claro. Está lá. O irmão não o recebe de braços abertos, nem poderia. Ele próprio não se recebe de braços abertos. Mas, de certa forma, ensaia-se uma convivência possível, o esboço de uma viabilidade. O trecho bíblico (João 9: 24-25: “Chamaram, então, a segunda vez, o homem que fora cego e lhe disseram: ‘Dá glória a D’us. Sabemos que esse homem é pecador’. Respondeu ele: ‘Se é pecador, não sei. Uma coisa eu sei: é que eu era cego e agora vejo’.”) nos fala disso. O mundo trevoso continua ali, mas agora ele pode enxergá-lo.