Algumas notas sobre "Pickpocket"

1. A seguinte piada: certo dia, Orson Welles adentrou uma sala de cinema em Paris sem checar o que estava passando. Pouco depois, saiu correndo apavorado, aos berros: “Meu Deus! É um filme de Robert Bresson!”. A meu ver, a piada diz mais respeito a Welles do que a Bresson.

2. Aquilo que Stanley Kubrick disse certa vez sobre a montagem ser o único elemento original e verdadeiramente criativo do cinema. Não que haja semelhanças de estilo entre Kubrick e Bresson, é claro.

3. A coreografia concebida para mostrar o protagonista em seu ofício (como o título indica, ele é um batedor de carteiras) chega a criar uma atmosfera sensual, ainda que eivada de artificialidade. A sequência no trem é a melhor de todas. Um verdadeiro balé. Os gestos como que suspensos. Leveza, imaterialidade. São fantasmas, atravessam corpos e paredes.

4. A câmera e os cortes sublinham a acuidade técnica do batedor de carteiras ao mesmo tempo em que mantém uma articialidade na mise-en-scène que desnuda o próprio jogo cinematográfico. Em outras palavras: a acuidade técnica do personagem é análoga à do cineasta, em um interessante jogo especular.

5. Embora direto, seco, frontal, “Pickpocket” não é realista. Por sorte, tampouco é moralista.

6. O filme se movimenta inteiro rumo à epifania final, em uma espécie de crescendo.

7. Ele é todo narrado pelo protagonista, que relembra, organiza e dá sentido aos acontecimentos mostrados, de tal forma que a ironia do policial para com ele, chamando-o de “écrivain”, não está ali por acaso.

8. “Pickpocket” é organizado na direção de uma experiência religiosa. Podemos dizer o mesmo em relação a “Caminhos Perigosos”, com a diferença de que, em Bresson, não existe aquela ironia cruel tão cara a Martin Scorsese.

8.1 Dizendo de outra forma: os personagens bressonianos alcançam, de fato, alguma transcendência, ao passo que os marginais de Scorsese terminam afundados no próprio sangue e no sangue dos outros, para além (ou aquém) de qualquer redenção moral.

9. É impressionante como Robert Bresson transforma até mesmo o ato de furtar em algo imaterial.